Piloto automático

katia betina

Eu sou dessas pessoas meio doidinhas, gosto de trabalhar, não porque trabalho paga contas, expurga pecados ou ainda porque usa o tempo, não nos permitindo pensar. Ē exatamente o contrário, trabalho me proporciona momentos de pura reflexão, de lazer, de contato com pessoas, oferece possibilidades de lapidar o que somos.

Num desses momentos leves que o trabalho possibilita, participando de uma oficina de planejamento, a facilitadora contratada para nos coordenar divide o grupo em equipes e entrega uma folha em branco para cada participante e enuncia uma tarefa.

Ela orientou que escrevêssemos o nome dos participantes no papel, traçou no chão uma linha e informou que seria considerada vencedora aquela equipe que conseguisse lançar essa folha o mais longe possível da marcação.

Eu imagino que você, assim como a maioria, pensou logo em fazer um avião de papel…

Foi isso que aconteceu, todos imediatamente nos pusemos a fazer um aviãozinho. Parecia a ideia mais indicada para aquela folha voar por sobre a linha e ir além. Todos, menos um colega da minha equipe, que permaneceu imóvel com o papel inteiro nas mãos, sem vincos, apenas com os nomes escrito, observando.

Tomada de curiosidade perguntei se ele não ia participar e ele me respondeu, – Vou sim, nossa equipe vai ganhar…

Quando chegou a hora da competição, enquanto todos se empenhavam em fazer performances das mais variadas para ajudar no voo do avião, ele simplesmente amassou a folha em forma de bola e sacudiu com força. Vencemos disparados…

Eu perplexa perguntava para mim “por que avião?”, em canto nenhum havia orientação para fazer um avião, apenas foi dito para lançar o papel a distancia, todo o resto foi uma dedução apressada, no piloto automático, assim como faço com um monte de coisas pela vida a fora, por que?

Uma forma lúdica de receber uma lição, mas insuficiente para mudar comportamento. Continuo amanhecendo o dia, ligando os motores no módulo rotina e sem questionar nada, vou seguindo. Até que a morte vem e carrega um amigo de forma súbita, sem aviso prévio.

Nunca sou bem sucedida nas minhas imersões filosóficas a respeito do significado da vida. Em todos os momentos minhas crenças, a falta delas ou aquele monte de teorias disponíveis são colocadas à prova e se revelam insuficientes para aliviar a carga de apreensões.

Uma morte nos coloca diante da inutilidade de ter se privado dos pequenos prazes cotidianos em detrimento de obrigações impostas e me pergunto quantas vezes deixei de comer para ser pontual, deixei de dormir para cumprir compromissos ou segui em frente, mesmo quando o mar convida para uma parada?

Costumo dizer que na minha vidinha de detalhes tudo funciona, do chuveiro elétrico a revisão do carro, do forno a fechadura da porta. Tudo no lugar, menos eu, que sumo perdida num universo de obrigações e de medos imaginários.

A morte obriga a uma reflexão e talvez por isso seja tão dolorosa, além da saudade que fica daquele que parte, ainda resta um conjunto de lembranças impregnadas em nós mesmos, quase que a dizer que verdadeiramente importa o afeto, o riso, o abraço ou a solidariedade, aparentemente tão simples e tão relevados a segundo plano na nossa lista de prioridades. A recordação de quem se foi nunca é de ordem prática, lembramos mesmo é do som da gargalhada.

Essa vida no piloto automático leva a embarcar num avião de papel, de possibilidade de voo curto, que fazemos cotidianamente sem pensar, acreditando que mais vale lapidar a vaidade numa prática de futilidades, como forma de se sentir importante sabe-se lá para quem, que mudar a maneira de existir.

Tive oportunidade de aprender com um amigo genial que amassando tudo de forma desordenada tinha possibilidades de chegar mais longe e mesmo assim optei por manter o guarda roupa arrumado, a casa arrumada, as relações arrumadas, ainda que saiba ser quase inútil.

Tive oportunidade de aprender com o amigo que parte, que mais vale o que não tem preço e mesmo assim continuo com preocupações pequenas, insignificantes diante da falta de garantia do tempo de vida que resta.

Siga em paz amigo, nas asas das gaivotas, nas asas dos anjos, nas asas dos Deuses. Não há mais pecados. Essa vida de detalhes continua a ser a missão de quem fica, de quem não aprende com os exemplos, você agora não cabe mais num avião de papel, na rotina, nas contas, na contestação dos valores ou no encontro com mortais, é maior que isso tudo.

Uma homenagem a Waldinho.

Agosto de 2017

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