O cãozinho – Segunda Parte

Ensinamentos do Bob

Katia Betina
Katia Betina

Aqui em casa, como em qualquer outro prédio, tem a hora de recolher o lixo e quando a campanhia tocou no horário esperado, o Bob que estava aqui, correu e colocou as patas dianteiras na porta, latindo e rosnado, impedindo que fosse aberta sem risco dele morder a zeladora ou fugir desembestado.

Eu que já me sentia completamente confortável com o comportamento arisco dele e já julgava que ele reconhecia, sem duvidar, as minhas boas intenções, vim por trás silenciosamente e tentei segurá-lo para afastar ele da porta.

Não sei se porque ele não viu que era eu, se agiu por instinto ou apenas porque é voluntarioso e não gosta de ser contrariado, virou-se rapidamente, com os dentes a mostra e com raiva me mordeu a mão, isso mesmo, ele me mordeu pela primeira vez.

Bob tem sido uma experiência e tanto. É quase certo ele passar por aqui por casa aos sábados, mas Pedro tem trazido ele em dias aleatórios também, como se quisesse aos poucos criar uma saudade da sua presença marcante e criar um ambiente só dele, com um vazio a ser percebido na sua ausência.

O fato ē que observar o comportamento dele tem sido um aprendizado, mas com essa mordida eu não contava. Ele pareceu entender que fez alguma bobagem, baixou o rabo e o focinho e olhava para mim com olhar de dúvidas, talvez o mesmo que eu estivesse usando para olhar ele.

Nossa relação havia melhorado muito desde a primeira vez um ano atrás, quando ele chegou aqui se comportando como se fosse o dono da casa, sem entender que nesse “latifúndio” sou eu o “macho alfa”, mas uma vez estabelecida a hierarquia, passamos a ter uma convivência harmônica e, sobretudo, afetuosa.

Essa necessidade de imprimir a ele a compreensão de que ē apenas um dos membros dessa matilha tinha o único objetivo de acalmar seu temperamento. Ele não é submetido a nada que não queira, tem seus desejos respeitados e isso é bom para mim também, me ensina a ser mais tolerante.

Aprendeu a demonstrar carinho, a pedir comida na mesa, escolheu lugar para descansar, passeia feliz, age normalmente como se estivesse confortável e se incorporou a nossa família, que ē naturalmente acolhedora, como sendo mais um.

Olhando pra ele é possível entender que é grato por ter sido aceito, reconhecer seus receios quando deita num lugar mais inacessível para não ser incomodado, que se sente confiante quando cobra a companhia, que escolheu amar para ultrapassar as dificuldades que já enfrentou e que se protege das dores das perdas mantendo certa reserva.

Seu jeito agitado, próprio de quem se sente vivo, e voluntarioso, de quem tem personalidade forte, não permite que identifiquemos um padrão de comportamento, o que deixa uma lacuna de dúvidas e impõe cuidado no trato.

O problema não é o Bob, ele é o que ē, o problema sou eu, quando reconheço em mim, no meu comportamento junto aos que amo, muitas das dificuldades dele, e o que isso representa de obstáculos para a tão sonhada paz.

Aquela mordida me deixou silenciosa e vi que procedi com ele como faço no dia a dia quando me sinto “mordida”. Ainda que tenha conseguindo me colocar no lugar dele para saber como pode ter “pensado” para agir daquela maneira, não pude perdoar simplesmente sem antes desabar com uma avalanche de sentimentos.

Bob não podia ter me mordido porque eu nunca o faria mal e me pergunto – por que comigo? Essa foi a minha mais imediata reação e é assim que faço com a vida real, afinal nunca tenho deliberada intenção de magoar ninguém.

Com Bob somos mais felizes quando ele balança o rabão batendo em tudo, somos melhores quando trocamos olhares cúmplices, nos tornamos mais compreensivos quando deixamos nossos interesses para atender aos dele, nos sentimos bem com a reciprocidade de carinho, por que então tanta reserva?

Aquela mordida, recebida sem o revide com palmadas ou gritos, sem reações agressivas e sem a real compreensão dos motivos pelos quais isso aconteceu, me remete às minhas próprias dores e me soa aos ouvidos como sendo um resumo da minha história, o mundo é o que é.

Se quiser ser feliz, terei que aprender com o Bob a aceitar os outros como são, inclusive sabendo que mais cedo ou mais tarde poderei ser mordida pelo que fiz ou simplesmente pelo que o outro achou que devia fazer e se não quero revidar de forma desproporcional, preciso aprender também que apenas silêncio não resolve, que relações envolvem passado e que magoas, se não resolvidas, minam afetos.

Outubro de 2017

PS – Essa história ainda não tem fim… hoje ē sábado, é dia de Bob.

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