Capacidade de Sonhar

Durante o banho, na hora que coloco o condicionador, passo o pente e o cabelo que caí, eu junto, grudo no revestimento da parede e quando saio do box, uso papel para retirar os fios e coloco tudo no lixo. Dessa forma evito o desconforto de ter cabelo no ralo.

Quando olhei hoje para o emaranhado de fios vi um perfil feminino formado pelos cabelos que estavam presos na cerâmica e lembrei-me da infância quando olhava as nuvens em busca de figuras, e acredite, eu as via, as mais variadas, com a mesma clareza que vi uma mulher desenhada na parede do banheiro.

Acho que a manutenção dessa capacidade de fantasiar deve ser uma das forças propulsoras para seguir nos caminhos que fui escolhendo nesse mundo tão hostil. O sonho é um ingrediente indispensável, mas certamente não deve ser o único.

Essa semana, assistindo TV, tomei conhecimento que a Alemanha introduziu no conteúdo escolar para as crianças, aulas sobre o nazismo e pensei, “o que pretendem ao tratar de um assunto tão dramático desses na infância, época dos sonhos”?

Pois bem, a resposta veio rápida e clara. Eles não querem contar nem mais, nem menos que os fatos ocorridos. Vão apenas mostrar com fotos e documentos o destino de milhares de crianças durante o período de Hitler e dessa forma permitir que desde muito pequeno façam um juízo de valores a respeito do que é certo ou errado.

Objetivam com isso que as crianças que não conviveram com os horrores da guerra, quando adultos, conhecendo a dor daqueles acontecimentos não negligenciem com a vigilância e não permitam que nada semelhante se repita.

Além disso, a Alemanha também criminaliza manifestações a favor do nazismo, numa tentativa de manter quieto, ainda que por força da lei, o conteúdo da “Caixa de Pandora”, (artefato que segundo a mitologia grega quando aberto permitiu que se espalhasse todos os males sobre humanidade).

Longe de mim achar que a Alemanha é o único lugar do mundo que tem boas políticas de incentivo a cidadania, recorro a ela apenas porque vi o assunto nesta semana. Tenho certeza que há muitas outras experiências com o mesmo objetivo.

Acontece que isso me fez pensar no que não tenho feito para contar as histórias que ouço da população simples com quem trabalho. Em como mantenho silencioso o sofrimento que ouço, presencio e pensei a respeito do que tenho visto por conta do período eleitoral, com falas que considero na contra mão de conquistas civilizatórias.

Eu juro que pensei que depois das gerações passadas terem vivido períodos tão difíceis, as gerações atuais e futuras estariam mais protegidas, mas parece que fomos poupados de ouvir histórias trágicas, permitindo que as coisas acontecessem naturalmente, sem imaginar que a natureza humana é demasiada diversificada, com possibilidades de comportamentos imagináveis.

Não tenho a pretensão de ter razão, mas receio que haja alguns retrocessos em assuntos que considerava resolvidos em definitivo e para conviver com essa realidade só recorrendo a minha habilidade para fantasiar, utilizando todos os sonhos que tenho para me manter seguindo nessa estrada, apesar da dureza da realidade e da intolerância.

E na esperança de dias melhores, toquei cuidadosamente na figura formada pelos fios de cabelo na parede, puxei um pouquinho pra forçar um sorriso, arrumei o que seria a cabeleira para parecer que havia acabado de levantar de um mergulho.

Os caminhos que percorri são responsáveis por minhas crenças e espero sinceramente ter conseguido sensibilizar Pedro com minhas histórias para que ele acredite e se esforce em participar da construção de um mundo melhor que esse, como vem sendo tentado com os pequenos alemães.

E se nada de bom acontecer, que ele saiba mais que eu, ser tolerante, amável, sem reagir a provocação fúteis, mantendo a capacidade de sonhar com um futuro mais solidário, menos violento, mais inclusivo e mais humano, apesar de tudo.

Setembro de 2018

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