Estudo propõe humanização da Justiça Brasileira

Recém-lançado em todo país, livro da advogada alagoana Alline Pedra Jorge, “Em Busca da Satisfação dos Interesses da Vítima Penal”, revela a ‘via crucis’ percorrida por vítimas de crime na luta contra a impunidade. Baseado em pesquisas de campo, realizadas em Maceió, o estudo inovador aponta caminhos para humanização da Justiça Penal Brasileira.

Da Universidade de Lausanne, na Suíca, onde trabalha em sua tese de Doutorado, a advogada nos concedeu esta entrevista.

Você descreve em seu livro, que o Brasil foi o primeiro país do mundo a ter sua Sociedade de Vitimologia. Na luta pela garantia dos direitos das vítimas, que tal temos nos comportado em relação aos outros países?

O Brasil possui inúmeras iniciativas na defesa dos direitos humanos, pouco divulgadas. Não estamos muito atrás de países como EUA, Canadá e dos países europeus. Em 1995, foi criado o primeiro Centro de Apoio, em Santa Catarina. Na Europa, a maioria dos Centros foram criados a partir da década de 90 (Suíça em 1991). Junto com a criação dos Centros na Europa, também foi publicada legislação específica de assistência às vítimas e o fundo de indenização estatal. Desta forma, infelizmente parece que nosso passo é mais lento que o do primeiro mundo, pois até hoje não temos legislação específica sobre o tema.

Mesmo assim, seu livro reflete que ainda há um abandono da vítima em todos os âmbitos do sistema criminal. Julga ser possível reverter essa realidade?

O que vemos hoje não é Justiça. Com exceção de alguns isolados juristas e operadores do direito, que se sensibilizam e compreendem a importância do apoio e respeito à vítima com um sujeito de direitos, observamos ainda o preconceito nas audiências, o desrespeito, a desconfiança, o autoritarismo ao invés da acolhida. Não que a vítima deva ser tratada com prestígio em relação ao acusado. Mas que também se garanta à vítima direitos. Aliás, não basta garantir em legislação, é preciso aplicar, o que passa por toda uma mudança de mentalidade em relação ao papel da vítima na Justiça criminal.

Durante estes seis anos, o que mais te motivou continuar pesquisando sobre Vitimologia?

Sempre fiquei muito indignada, com o conceito de vítima, enquanto possível colaboradora ou provocadora do delito, principalmente no contexto do Brasil onde ninguém é vítima porque quer. Há uma série de outras variáveis como falta de segurança nas ruas, iluminação e transporte precários, corrupção, falta de informação e educação adequada aos adolescentes e crianças, enfim, todas variáveis que contribuem para o fenômeno do crime. Por que então culpabilizar a vítima, julgar e crucificar como se fosse a única culpada? Porque escolheu o marido violento, porque usou uma saia curta, dançou e bebeu no bar, porque deixou o carro aberto, porque reagiu a agressão, e uma infinidade de porquês, chegando-se sempre a conclusão, ainda que indiretamente e nas entrelinhas, que a vítima é a culpada.

Nos crimes sexuais, como garantir a proteção destas vítimas quando muitas vezes os próprios profissionais que realizam o atendimento não estão preparados para tal?

Principalmente a vítima de crime sexual deve ter uma retaguarda, que seria um advogado patrocinado pelo Estado, ou um assistente social, como acontece aqui na Suíça, que acompanha a vítima no momento de fazer a denúncia. Isso gera normalmente um maior respeito da parte daquele profissional que cuidará do caso. É como se porque ela está acompanhada é uma vítima que tem credibilidade. Claro que tem que mudar essa mentalidade, mas para evitar mais sofrimentos, ir acompanhada é uma solução. Outra sugestão é colocar na lei a prioridade de atendimento da mulher por outra mulher, no sistema como um todo, isso inclui polícia, Justiça e Ministério Público, como acontece aqui. É direito da vítima mulher solicitar para ser atendida e seu caso ser julgado por uma outra mulher. Isso evita uma série de constrangimentos. E se os advogados de defesa agem como querem, pode ter certeza que é porque em muitos casos há conivência do sistema, que vê a agressão moral acontecendo e não se manifesta, não impede, não impugna o discurso.

Suas pesquisas de campo, realizadas em Maceió, revelaram que as vítimas não participam do processo criminal e que para os serventuários da Justiça não passam de meros números no papel. O que mais te impressionou neste estudo?

O meu maior choque durante a pesquisa foi constatar que os serventuários dos cartórios criminais com os quais tive contato não sabiam o nome da vítima, mas sabiam o do agressor. O ser humano é despersonalizado quando cai na condição de vítima, perde a identidade e vira a vítima da chacina, do marido, da candelária. Sempre dominada, nunca dominante.

Como analisa o tratamento concedido a estas pessoas pelo sistema criminal de Alagoas, desde a fase em que buscam proteção na polícia até o encaminhamento de suas denúncias no âmbito do Poder Judiciário?

Hoje sei que com o trabalho do Centro de Apoio, aquele trabalho de formiga, de ir todo dia no cartório, de conversar com o juiz, com o policial, as coisas vem melhorando, uma realidade diferente da encontrada na época da pesquisa (2001). Mas ainda há muito a ser feito. O cansaço do dia-a-dia deixa as pessoas bem menos sensíveis aos dramas humanos. “Ela é mais uma… Ah, você aqui de novo?…Eu já vi gente em situação bem pior que a sua”…Esse tipo de atitude, de discurso, desanima o cidadão que procura apoio.Além do mais, não há nenhuma lei que nos obrigue a fazer a vítima participar. A relação é ainda muito estreita entre promotor de Justiça, juiz, acusado e seu advogado.
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Então, como podemos lutar contra a impunidade num Estado onde predominam tantos crimes impunes e as relações de poder entre criminosos e o sistema reforçam essa cultura?

Creio que a cultura da corrupção, da impunidade, da vantagem, do nepotismo e do favorecimento estão nas nossas entranhas. Sinto muita tristeza em dizer isso, em relação a corrupção, por exemplo, foi feita uma pesquisa na Europa – incluindo países como a Suíça, a Inglaterra, a Alemanha e outros países mais parecidos com o Brasil, como Itália e Espanha –, ouvindo a população para que fossem atribuídas penalidades a crimes como desvio de recurso público, estupro, roubo (com violência) e furto. Nos países onde o nível de corrupção era baixo, quase nulo, como na Suíça, a população atribuiu a pena mais alta para o crime de desvio de recursos. Nos outros países onde a corrupção era mais alta, foram atribuídas penas mais brandas para o mesmo crime. Somos muito passivos, aceitamos a corrupção, a impunidade. É sempre o mesmo discurso: “não tem jeito mesmo”. E tudo isso soa como um reforço, como se fossemos coniventes.

Sua pesquisa propõe caminhos para humanizar a Justiça criminal no país. De que maneira acredita ser possível avançarmos neste sentido?

Acredito em duas medidas práticas que poderiam operar mudanças: a primeira, a criação de uma legislação descente de assistência às vítimas. Dizem que quando vira lei, tem mais força, então vamos acreditar. A outra é um trabalho contínuo de educação e formação com os operadores do direito, mas algo sistemático, que fosse feito com freqüência e insistência. Dizem também que água mole em pedra dura tanto bate até que fura…

As propostas retiradas de seu livro sugerem flexibilizações por parte do MP, a criação de um fundo de indenização as vítimas, união das ações penais e cíveis e nova pena alternativa. Não estamos muito longe deste modelo de justiça?

O Brasil, apesar de ter personalidade e iniciativa em alguns aspectos, é um país que segue moda. A moda na Europa, desde o início da década de 90, é a assistência às vítimas, e ainda hoje, com a experiência que estou vivendo aqui, entrevistando também vítimas de violência, os cidadãos encontram juízes preconceituosos, que absolveram policiais, apesar de terem cometido abuso de poder. São 25 anos de luta nesse sentido, do lado de cá, incluindo o tempo de manifestações da sociedade civil organizada e finalmente a publicação da lei. São 15 anos de Centro de Apoio. É muito tempo, mas é pouco pra mudar cultura. Mas eles estão conseguindo. Por que a gente também não pode conseguir?

Os Centro de Apoio instalados no Brasil vêm cumprindo seu papel na prevenção da vitimização?

Acredito nos Centros de Apoio no sentido da prevenção enquanto informação sobre o que é violência, antes que ela chegue até você. Isso é um trabalho de palestras e oficinas em comunidades carentes, escolas, que pode surtir alguns efeitos no sentido de alertar as pessoas sobre o contexto no qual estão inseridas. Pode salvar algumas vidas. Mas a gente também tem que sacudir a população para se movimentar e gritar contra a violência escondida, gravíssima, que faz sofrer milhões, que é a corrupção. Então os trabalhos educativos devem também incluir lições de cidadania, instruindo o povo a não se deixar abater, a brigar, a votar. Mas nosso povo está tão fraco, com fome, aparentemente sem perspectiva…Eu também estava bem cansada quando resolvi vir para cá…

Quando você defende o direito da vítima a opinar sobre a sentença aplicada a seu agressor, acredita ser esse de fato um caminho para satisfação da vítima?

Opinar na sentença traz para a vítima um sentimento de consideração da sua pessoa enquanto sujeito de direitos. Mesmo que sua opinião seja em parte, ou não seja levada em consideração. Nas entrevistas, escuto muito elas dizerem que querem ser ouvidas. Isso é o mínimo que podemos fazer pelas vítimas de violência, ou melhor dizendo por nós mesmos, pois não conhecemos o dia de amanhã.

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