Pesquisa da Anistia Internacional mostra que maioria dos autos de resistência é contra homens negros e fica sem solução

Quatro a cada cinco vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial na cidade do Rio — os chamados autos de resistência — são homens negros. Em 75% dos casos, as mortes atingem jovens com menos de 29 anos. Os dados constam no relatório “Você matou meu filho”, divulgado hoje pela Anistia Internacional, que analisou os 1.275 autos de resistência ocorridos no município entre 2010 e 2013.

Além do perfil das vítimas, o levantamento feito pela ONG também destaca a baixa resolução desses autos de resistência. Entre 220 investigações de homicídios ocorridos na cidade em 2011, em apenas um já foi apresentada a denúncia por parte do Ministério Público. Até abril, 183 casos — ou 83% deles — continuavam em aberto junto à Polícia Civil.

— A impunidade alimenta o ciclo de violência e acaba se tornando uma espécie de carta branca para esses policiais militares — alerta Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional.

Apesar de uma tendência de queda registrada entre 2008 e 2013, os autos de resistência voltaram a subir no período mais recente. No ano passado, por exemplo, um a cada seis homicídios ocorridos na capital do estado foi praticado por policiais em serviço, como também aponta o relatório elaborado pela entidade.

A partir dos registros de ocorrência, a Anistia Internacional confrontou a versão oficial oferecida pelos agentes envolvidos em parte dos casos com o relato de outras testemunhas. O trabalho de campo se deu na favela de Acari, que faz parte da área de atuação do 41º BPM (Irajá), recordista de mortes no estado, com 68 autos de resistência em 2014. A comunidade analisada, sozinha, foi palco de dez homicídios decorrentes de intervenção policial ao longo do ano. No mesmo período, nenhum PM foi morto em serviço na comunidade.

— Os PMs, via de regra, alegam que houve uma situação de confronto, e que teriam reagido a uma “injusta agressão”, como se diz no jargão. Os depoimentos que obtivemos, porém, quase sempre apontavam para algo diferente. Dos dez casos em Acari, isso ocorreu em nove. No outro, não conseguimos relatos suficientes para determinar o que pode ter ocorrido — diz Renata Neder, antes de acrescentar:

— Há fortes indícios de que essas mortes foram execuções extrajudiciais.

Detalhes do levantamento

Dez meses

A Anistia Internacional realizou a pesquisa entre agosto de 2014 e junho de 2015. Além do recolhimento de dados oficiais, foram feitas 14 visitas a Acari e ouvidas 50 pessoas, entre testemunhas, parentes de vítimas e servidores públicos, incluindo policiais.

Documentos

Além disso, a entidade teve acesso a registros de ocorrência, atestados de óbito, laudos periciais, inquéritos, fotos e vídeos.

Outras mortes

A pesquisa também esmiuçou, além das mortes de Acari, outros seis autos de resistência ocorridos em diferentes pontos da cidade. Em todos, aponta “uso desproporcional e arbitrário da força” por parte da polícia. Um dos casos é o do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, morto na porta de casa durante uma ação da PM no Complexo do Alemão, em abril deste ano. Policiais são acusados da morte do garoto.

Rio x EUA

No último domingo, o EXTRA mostrou que os casos de autos de resistência no Rio subiram 21% no primeiro semestre deste ano, em relação com o mesmo período do ano passado. Numa comparação com mortes provocadas por policiais dos Estados Unidos, PMs da área do 41º BPM, onde moram 538 mil pessoas, mataram mais suspeitos do que os policiais da Flórida, estado com 20 milhões de habitantes.

Resposta da PM

Os autos de resistências geram averiguação e podem, em alguns casos, se tornar Inquérito Policial Militar (IPM).

A Polícia Militar ainda não teve acesso ao conteúdo da pesquisa para ser possível emitir um posicionamento sobre a abrangência temporal e espacial, metodologia, critérios de seleção da amostra e resultados conclusivos.

Cabe ressaltar, contudo, que desde a implantação do Sistema Integrado de Metas (SIM), em 2009, as polícias têm sido premiadas pela redução da chamada letalidade violenta, que inclui os autos de resistência.

O estado Rio de Janeiro registrou o menor índice de homicídios dolosos para o mês de junho em 24 anos. Foram 272 casos, número mais baixo de toda a série histórica, desde que os dados começaram a ser disponibilizados pela Polícia Civil, em 1991.

Depoimento Terezinha Maria de Jesus, de 40 anos

Mãe do menino Eduardo de Jesus Ferreira, morto aos 10 anos durante uma operação da PM no Complexo do Alemão, em abril deste ano

“Eles atravessaram a mata, chegaram na porta da minha casa e atiraram. Depois de acertarem meu filho, um deles ainda me ameaçou: ‘Assim como matei seu filho, posso te matar’. Tentaram plantar uma arma, tentaram remover o corpo… Se eu não estivesse em casa, e não tivesse os enfrentado, talvez tivessem conseguido colocar meu filho de 10 anos como bandido. Mais tarde, chegaram a dizer que a arma do PM disparou sem querer, depois que o policial teria tido um surto psicótico… Cada hora, uma desculpa. Minha dor só vai diminuir no tribunal, quando eu ver que eles foram condenados. Não trará meu filho de volta, mas saberei que a luta não foi em vão”.

Entrevista com Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional.

Por que a escolha pela cidade do Rio?

Primeiro, porque é um dos poucos estados que produzem e divulgam dados estatísticos de homicídios cometidos pela polícia. É uma política de transparência, que permite um trabalho com esses números. Além disso, existia essa tendência de queda dos casos, que persistiu até 2013, quando voltou a subir. Isso chama a atenção.

Que avaliação é possível fazer desse perfil das vítimas, a maioria negros e jovens?

É importante frisar que esse perfil é semelhante ao dos homicídios como um todo, embora se acentue ainda mais nos autos de resistência. O dado está no relatório para propor uma reflexão. Quem está morrendo no Brasil? A violência letal no país não afeta a todos da mesma forma. Um jovem negro e um jovem branco não têm a mesma chance, estatisticamente, de ser vítima de um homicídio. A sociedade precisa debater isso.

Existe, na sociedade, um certo pensamento hegemônico de que “bandido bom é bandido morto”, independemente das circunstâncias em que isso ocorra. Como combater esse cenário?

Temos visto recorrentemente esses casos de linchamento, que basicamente são as pessoas partindo para o que acreditam ser fazer justiça com as próprias mãos, mas que nada mais é do que dar vazão a um sentimento de vingança. A gente precisa resgatar o valor do estado de direito, é preciso mudar a mentalidade das pessoas. Além de campanhas públicas com esse foco, a imprensa também tem o importante papel de questionar.

Como diminuir o número de autos de resistência?

O relatório enumera uma série de medidas concretas que podem ser tomadas pelas autoridades para enfrentar a violência policial e a impunidade. Por exemplo: no Rio, foi criada, em 2010, uma Divisão de Homicídios (DH), que teve papel importante no aumento da resolução de crimes. Os autos de resistências deveriam ser, todos, investigados por essa unidade especializada, e não ficar nas delegacias distritais. Para isso, claro, é necessário que a DH ganhe em estrutura e recursos para absorver esses casos. Ao Ministério Público, que está sendo omisso nessa questão, a sugestão é criar uma força-tarefa para investigar os casos que permanecem em aberto. Por fim, é importante que a Polícia Militar, enquanto instituição, possa implementar medidas para coibir esse tipo de prática.

Fonte: EXTRA Online

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