Agosto, o mês do desgosto…

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A casa dos meus avós tinha regras diferentes das nossas e certa vez, quando minha mãe viajou e me deixou, muito pequena, sob os cuidados de minha avó, tivemos uma dificuldade logo no primeiro dia. Ela ficou aborrecida ao pentear o meu cabelo depois do banho, porque concluiu que eu só penteava o cabelo “por cima”, e que “por baixo” estava cheio de nós.

Eu lembro da penteadeira, do tecido de veludo que cobria o banco que eu estava sentada, de uma escova decorada com porcelana pintada, da fresta de luz entrando pela janela, dos pedacinhos de cabelo voando como se tivessem assas e de minha vó dizendo – Lucy, (minha mãe) não cuida direito dessa menina…

Na época eu não consegui entender que “por baixo” significava a raiz próxima da nuca, tanto que enquanto era hóspede, passei a me esforçar para chegar com pente até o final do fio de um cabelo longo, para não pentear “só por cima”, acreditando que estava corrigindo o motivo da reclamação.

Minha incompreensão, de fato, foi resultado da criação que recebi. Cabelo limpo era importante, minha mãe cobrava que fosse lavado, mas não que estivesse bem penteado. Quando julgava necessário, ela o fazia. Já a comida não tinha a mesma flexibilidade. Recordo que numa manhã tentei sair para o colégio sem comer e minha mãe mandou me buscar, tive que voltar do meio do caminho, sentar na mesa, tomar minha vitamina de banana e comer o pão com ovo, não era permitido sair em jejum.

Minha mãe era vaidosíssima, linda, educada, culta, cheia de virtudes e lúcida.

A medida que fui crescendo, as cobranças dela comigo foram mudando. Se comer bem já era uma lição aprendida, passou a incorporar outras coisas na minha educação, das mais variadas, desde as simples como sentar ou usar guardanapo, até as grandiosas como ser uma mãe zelosa, ter uma casa organizada, dar valor a família e gostar de Natal.

É engraçado como não preciso fazer esforço para lembrar dela, encontro os vestígios no que ficou em mim mesma, quando enxergo irmãos solidários, sobrinhas organizadas, uma família com paixão pelas artes, ou em como são fortes as mulheres da sua descendência.

Da mãe que gostava de cinema, que ia votar mesmo quando não tinha mais obrigatoriedade, que tentava controlar, disfarçadamente, a vida da gente, que lia muito, apaixonada pela vida, foi restando uma mais frágil, mais dependente, mas não menos corajosa, inclusive quando me confidenciou que já não tinha mais medo da morte.

Agosto não era o preferido dela, meu avô dizia e ela repetia que era “o mês do desgosto”, acho que gostavam da rima, e talvez, não por acaso, tenha sido o escolhido pelo destino para a derradeira viagem.

A vida é finita, a saudade não; o amor é eterno, mas falta o abraço e ainda que esteja falando de alguém cuja partida se deu faz tanto tempo, não hei de esquecer as lições que recebi. Cabelo arrumado ē menos importante que uma boa refeição, talvez esse seja o mais significativo aprendizado, porque me ensinou que primeiro fazemos o necessário, só depois nos ocupamos com o restante.

Acabou sendo ela a me ensinar que para desembaraçar “por baixo” era necessário sentir o pente passar, como que acariciando a pele da cabeça, desde a raiz. Lucy cuidou de mim…

E de vez em quando, ao me pentear, me lembro dela com o pente na mão, diante de um espelho, arrumando o próprio cabelo, sempre elegante, e fico desejando que surja das tantas lembranças que tenho, uma boa lição para cada momento, quem sabe assim erro menos?

Saudade do cheiro, do abraço, da voz, de tudo.

Para mamãe

Da sua filha, Katia Betina

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