Os invisíveis

Eu não costumo dar esmolas na rua, nunca gostei dessa prática, quando tinha revistinhas infantis e comprava material escolar, distribuía nos sinais, era o mais parecido que fazia. Quando é possível colaborar, faço de outras formas.

Uns dias atrás eu fui abordada por um grupo que pedia ajuda para o figurino de um folguedo popular e, nesse caso, lamentei não estar com dinheiro de fácil acesso. Tinha algum na carteira, que estava dentro da bolsa e não teria dado tempo, durante o restinho do sinal, para abrir isso tudo.

A partir desse dia, adotei um outro costume, deixei um pouquinho de dinheiro em notas pequenas numa das caixinhas do painel do carro para, caso encontrasse aquele grupo, poder colaborar.

Gosto e acredito na ideia de que ocupar os jovens com atividades saudáveis os afastam das drogas e do álcool, os tornam mais propositivos e os ensinam a lidar com conquistas e frustrações, atributos necessários para saúde mental e bom desempenho nos estudos.

Lamentavelmente não reencontrei os garotos para me redimir, em vez deles, enxerguei o quanto aumentou a quantidade de pedintes nos sinais.

Enquanto procurava o grupo de folclore encontrei foi um rapaz, jovem, parecendo saudável, com bochechas rosadas do calor, com excelente aparência, com boas condições físicas (ele corria o tempo todo), vendendo confeitos com a seguinte justificativa “ajude este desempregado neste trabalho honesto”, honesto sim, mas sem segurança social, sem geração de riqueza, sem regulamentação, sem proteção, sem nada…

Eu trabalho com saúde pública, por isso houve uma época que olhava os jovens nas ruas e me conformava, dizendo para mim mesma que não estavam em cadeira de rodas, porque havíamos erradicado a paralisia infantil, ou que estavam vivos, já que havíamos ajudado na diminuição da mortalidade infantil. Era só uma questão de tempo para melhorar o resto.

Senti saudades da época que o meu coração era menos frágil e não se derretia por tudo, época que acreditava num futuro melhor, que tinha a ilusão de um mundo mais justo.

Naquela época eu olhava quem pedia dinheiro e não reconhecia neles capacidade de trabalho, os via como “semi” incapacitados, ou por falta de estudo ou de saúde e me justificava pensando, “você trabalha para melhorar a vida deles, basta seguir em frente”.

E essa “quase verdade”, “quase” se consolidou, os indicadores gerais de saúde, tais como: as morte por causa de parto, por doenças evitáveis por vacinas, por falta de pré natal, ou ainda a detecção precoce de câncer (dentre outros) melhoraram e eu voltava para casa comemorando esses avanços.

Houve uma época que eu tinha a certeza que todos os jovens iriam estudar, entrar no mercado de trabalho, ter uma vida mais digna e que iram ajudar a tornar o Brasil a potência prometida, talvez por isso, ver o “futuro” entre os carros, nos sinais, não me parecia um soco no estômago.

A procura de ajudar um grupo em uma atividade lúdica, encontrei foi a realidade do desemprego e do subemprego. Não foi isso que sonhei.

Esse é o mundo real que eu relutei em enxergar, que ressurge com mais perversidade porque a esmola agora é para jovens com alguma capacitação, cujo o sonho de uma vida melhor virou fumaça.

Seria mais fácil de resolver isso se o mundo fosse dividido apenas entre esquerda e direita, entre quem é contra ou a favor desse ou daquele governo, na verdade o mundo é dividido entre invisíveis e semi brilhantes, entre mudos e falsos profetas, entre cegos e os que não desejam enxergar, entre os que estão na rua e gente como eu, que segue em frente como se nada disso existisse.

Não quero olhar o passado com nostalgia e igualmente não quero olhar o futuro sem esperanças… quem necessita de ajuda na aquisição de uma fantasia, neste momento, sou eu, a realidade tem se revelado difícil para enfrentar sem utopia para vestir o sonho.

Julho de 2019

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