Infectologista relata complicações em pacientes que adotaram ‘tratamento precoce’

Infectologista descarta eficácia de ‘tratamento precoce’ contra Covid-19 — Foto: Arquivo pessoal/Fernando Chagas

O médico infectologista Fernando Martins Selva Chagas, de 41 anos, diretor do Complexo Hospitalar Clementino Fraga, referência para tratamento da Covid-19 em João Pessoa, relatou casos em que os pacientes expressaram surpresa por terem tido a forma grave da doença mesmo após adotarem algum tipo de “tratamento precoce” contra o novo coronavírus, fazendo uso de medicamentos sem comprovação científica, como cloroquina, azitromicina e hidroxicloroquina, no início da doença.

No grupo dos que se surpreenderam, estão até colegas da área de saúde.

“Vários pacientes me relataram que tomaram os medicamentos [nos primeiros dias de sintomas da Covid-19] e não melhoraram. Um médico veio para o hospital, tinha tomado ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, complexo de vitamina D e zinco. Ele evoluiu pra forma grave [da Covid-19], foi internado. Durante a internação, a gente conversou sobre o fato dos pacientes não responderem [ao tratamento precoce]”, recordou.

Além de casos de uso de medicamentos para tratar a Covid-19, o infectologista relata situações de pessoas que tomavam remédios mesmo sem ter a doença, como forma preventiva – o que também não existe para Covid-19.

“Atendi paciente que já vinha tomando ivermectina há seis meses, porque acreditava que não ia pegar Covid-19. Peguei paciente que ficou muito tempo internado porque começou a tomar corticoide no primeiro dia de doença”, revelou.

Alguns pacientes também costumam apresentar resistência durante as tentativas do médico para desmistificar o uso dos medicamentos.

“Porque já se criou uma imagem que, se começou a doença, tem que tomar azitromicina, ivermectina e hidroxicloroquina pra tentar tratar. Por conta dessa informação, que ficou difundida demais, o difícil é a gente desmistificar. E muitas vezes a agente até perde o paciente, ele vai buscar outro especialista”, lamentou.

O trabalho de conscientização sobre os métodos corretos para tratar a doença exige paciência.

“O que falta é orientação. Mas [os pacientes] entendem quando são bem orientados”, ressaltou.

O médico apontou para a falta de evidências que comprovem a eficácia do tratamento precoce para tratar casos de infecção pelo novo coronavírus e alertou sobre a probabilidade dos medicamentos, usados na prevenção e na fase inicial de contágio, provocarem outras doenças.

O médico presenciou casos em que todos os pacientes que aderiram ao protocolo evoluíram para as manifestações mais graves da doença.

“No único hospital privado que eu faço visita, chegou um tempo de eu passar visita em oito pacientes graves e todos terem usado azitromicina, ivermectina, hidroxicloroquina, tudo. E desses oito, infelizmente, um foi a óbito”, lembrou.

Apesar de lastimar por todas as perdas, a morte de um amigo lhe recorreu à memória.

“Um amigo estava internado aqui [João Pessoa] em um grande hospital privado. Só fiquei sabendo que ele estava doente quando o atendi na enfermaria. Ele havia tomado ivermectina, azitromicina, zinco e vitamina D. Evoluiu para a forma grave e acabou falecendo”, desabafou.

Presidente do Comitê Municipal de combate à Covid-19 da capital paraibana e na linha de frente no combate ao novo coronavírus desde março do ano passado, Fernando coleciona relatos sobre pacientes que tiveram complicações causadas por medicamentos indicados, por alguns profissionais de saúde, para prevenir ou tratar a fase inicial da doença.

“Eu já atendi pacientes que desenvolveram, por exemplo, pancreatite por causa do abuso de medicamentos, principalmente ivermectina. Pacientes que estavam utilizando ivermectina há meses, desenvolveram Covid e foram pra forma grave. Pacientes com arritmia cardíaca possivelmente por conta da azitromicina e por aí vai”, relatou.

Fernando acredita que é difícil filtrar a grande quantidade de informações dispostas em estudos, na área da medicina, sobre a Covid-19. No entanto, ele também relacionou a recomendação de tratamento precoce com convicções pessoais.

Ivermectina se tornou uma das medicações mais citadas por aqueles que defendem tratamento precoce contra a Covid-19 — Foto: Getty Images via BBCIvermectina se tornou uma das medicações mais citadas por aqueles que defendem tratamento precoce contra a Covid-19 — Foto: Getty Images via BBC

“E tem a questão ideológica associada, a questão político-partidária associada, que faz com que muita gente só enxergue os estudos que convêm, não aqueles que têm mais força no critério científico”, destacou.

Fernando, que também é farmacêutico, deu mais exemplos de como o abuso de medicamentos, indicados para tratamento precoce, pode ser prejudicial à saúde dos pacientes.

O profissional de saúde explicou que as vitaminas são substâncias utilizadas para proporcionar reações químicas importantes no organismo. Sem elas, essas reações não aconteceriam e as pessoas teriam problemas causados pela falta dessas reações.

Ele lamentou o aumento na frequência da prescrição de vitaminas para reforçar a imunidade, que também têm sido utilizadas no combate ao coronavírus, sem comprovação científica de eficácia.

“Não existe isso. A gente descobriu que muita gente que evoluiu pra forma grave tem hipovitaminose D, tem déficit de vitamina D. Mas isso não quer dizer que vitamina D trate Covid. Não trata.

O médico, por fim, reforçou que as medidas que fazem a diferença no prevenção à Covid-19 continuam sendo o uso de máscara, de álcool em gel e o distanciamento social.

Pacientes com evolução grave da Covid-19 em Manaus fizeram ‘tratamento precoce’, diz médico

“Pelo menos 50 doentes eu vejo por dia, nas últimas duas semanas. Eu sei que todos eles fizeram tratamento precoce”. Esta é uma parte do relato que o médico intensivista Anfremon D’Amazonas, que trabalha no Hospital Universitário Getúlio Vargas, em Manaus, publicou por meio de um vídeo em um perfil de rede social.

Em meio a caos na saúde, ele lamentou que a falsa eficácia do tratamento precoce tenha se disseminado entre a população.

“Tudo que é de tratamento precoce os doentes fizeram em casa, sem sintomas respiratórios. Os doentes […] já compram, fazem estoque em casa e começam a tomar sozinhos”.

Por fim, ele acredita que o país precisa se preparar para uma segunda onda de transmissão e infecção da Covid-19. “Se preparem, ela vai ser devastadora. Ela vai levar muitas vidas”, concluiu.

Fonte: G1

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