Quando o cuidado falha: o dilema das famílias alagoanas diante dos transtornos mentais graves

Entre 2024 e 2025, atuando como Psicólogo na Defensoria Pública do Estado de Alagoas, deparei-me com dezenas de casos que escancaram o abismo entre o ideal e o possível quando se trata de transtornos mentais graves. O discurso técnico muitas vezes ignora o desamparo cotidiano enfrentado por quem vive e convive com a dor psíquica.

Não somos a Itália, a Alemanha ou o Canadá. Aqui, a eficácia das políticas públicas depende menos de teorias e mais da construção de redes vivas, acessíveis e intersetoriais.

O desafio é oferecer um cuidado que seja presença e não suplência, encontro e não exclusão. O sofrimento mental não espera. E nenhuma vida pode ser deixada à margem por falta de uma porta onde bater.

A internação psiquiátrica, quando inevitável, deve ser o último recurso, mas precisa estar disponível quando não há condições seguras de permanência no domicílio. Negar essa possibilidade é legitimar o abandono e perpetuar o sofrimento.

A distância entre o que prevê a legislação e o que se vive na prática revela um cenário de invisibilização e negligência. Enquanto o debate técnico se mantém desconectado da realidade concreta, famílias adoecem emocional, física e financeiramente.

Sem retrocessos manicomiais, claro. Mas também sem utopias, a romantização da desinstitucionalização é perigosa quando desconsidera a estrutura real de cuidado disponível. As famílias não pedem manicômios, também não desejam abandono institucional, elas pedem ajuda, rede, escuta, cuidado.

E se fosse com você?
•        Você já acordou com sua filha em surto psicótico tentando esfaqueá-la?
•        Já encontrou uma carta de despedida de um filho com esquizofrenia que desapareceu?
•        Já se trancou no banheiro porque seu irmão, em surto, ameaçava matá-lo?
•        Já pediu medidas protetivas contra sua própria mãe por ela colocar você e suas filhas em risco?
Essas histórias são reais e mais comuns do que gostaríamos de admitir.

Quem nunca acompanhou um paciente em surto psicótico, nunca realizou atendimento direto às famílias, ou nunca vivenciou a exaustão de cuidar de um ente com transtorno mental grave, deveria, no mínimo, exercer maior respeito (e, idealmente, admiração) pelos profissionais da saúde e do serviço social que atuam na linha de frente desses contextos.

Internação não é exclusão. Em muitos casos, é a única fresta de cuidado possível diante do agravamento dos surtos, da rejeição ao tratamento e da sobrecarga dos cuidadores. Fingir que não vemos essa realidade é mais do que omissão, é conivência com o sofrimento alheio.

Talvez me falte lucidez para entender como leitos psiquiátricos em hospitais gerais são considerados mais humanizados do que hospitais especializados, com equipes capacitadas, estrutura adequada e ambiente acolhedor. Certamente, não me faltam estudo, embasamento e vivência para questionar essa lógica.

Se construído com responsabilidade, um novo modelo de hospital psiquiátrico pode e deve marcar uma nova era na política de saúde mental em Alagoas. Um modelo que compreenda a internação como:
•        digna,
•        proporcional,
•        qualificada,
•        voltada à reinserção,
•        com suporte às famílias,
•        em ambientes menos restritivos,
•        e indicada apenas diante de risco iminente à vida.

Que a escuta comece com quem vive o surto, o medo e o amor e não apenas nos gabinetes.
A política pública de saúde mental em Alagoas precisa ser feita com as famílias, e não apenas sobre elas. Aos que enfrentam, muitas vezes sozinhos, o peso de cuidar de quem sofre psiquicamente, reforço meu compromisso ético em transformar dor em dignidade.

O que defendo não é a hospitalização indiscriminada, mas suporte humano, clínico e proporcional. Toda política pública que ignora esses cuidadores está fadada ao fracasso. Porque quem ama, cuida e quem cuida, também precisa ser cuidado.

*Psicólogo da Defensoria Pública de Alagoas

Veja Mais

Deixe um comentário