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Bispo Filho

Bispo Filho é Administrador de Empresas e Estudante de Jornalismo.

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Três anos da “NOVA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL” – Mudanças contra a Desassistência Ideológica

Quirino Cordeiro – Médico Psiquiatra; Ex-Coordenador Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2017-2018); Secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania (2019-atual)

Em agosto de 2017, a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde apresentou diagnóstico da “Antiga Política Política Nacional de Saúde Mental” na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do Sistema Único de Saúde (SUS), mostrando problemas importantes concernentes à Gestão, Modelo Assistencial e Indicadores de Resultados.

No que tange à Gestão, o Ministério da Saúde vinha aportando grande quantidade de Recursos Financeiros para Estados e Municípios sem qualquer execução. Além disso, haviam problemas importantes de produção e eficiência dos Serviços de Saúde Mental pelo Brasil afora.

Resumindo, foram identificados incentivos financeiros que não foram utilizados para criação de novos Serviços (cerca de 1.500 Serviços e mais de 1.000 Leitos em Hospitais Gerais); subnotificação de atendimentos (algumas centenas de Serviços não apresentavam qualquer produção e continuavam a ser financiados pelo Ministério da Saúde); financiamento pelo Ministério da Saúde de dezenas de vários Serviços que não existiam; baixíssima taxa de ocupação de Leitos em Hospitais Gerais com pagamento de diárias como se houvesse sua utilização plena (cerca de 15% de taxa de ocupação, com prejuízo de mais de R$ 80 milhões/ano ao Ministério da Saúde); irregularidades flagrantes na avaliação de Hospitais Psiquiátricos por meio do Programa PNASH, que era utilizada apenas como justificativa para o fechamento desses Serviços; denúncias de violação de direitos em Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), que eram utilizados no processo de Desinstitucionalização de pacientes atendidos em Hospitais Psiquiátricos; centenas de pacientes que já faleceram recebendo benefícios do Programa de Volta para Casa (PVC); mais de 200 obras financiadas pelo Governo Federal e não executadas; vultuosos recursos não utilizados para prestação de cuidados a pacientes (só o Município do Rio de Janeiro, entre 2013 e 2015, recebeu R$ 94 milhões para tratamento de dependentes químicos – situação parecida ocorreu em outros Municípios, como Juiz de Fora/MG e Sorocaba/SP); inconformidades na prestação de contas em convênios realizados pelo Ministério da Saúde com instituições de ensino e pesquisa; ausência de equipe mínima em um quinto dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); baixas taxas de matriciamento e atendimento à crise realizados pelos CAPS; Cursos custeados pelo Ministério da Saúde com baixíssimo conteúdo técnico-científico e alto teor de doutrinação político-ideológica. Tais flagrantes de irregularidades foram informados aos gestores do SUS e encaminhados a órgãos de controle.

Sobre o Modelo Assistencial, a Desassistência era a tônica do processo. Com a não-inclusão dos Ambulatórios na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), tais Serviços passaram a não ser mais financiados pelo Governo Federal e, consequentemente, fechados. Tal situação levou à grande Desassistência de base comunitária em Saúde Mental no país, já que os Ambulatórios são extremamente resolutivos e capazes de realizar grande volume de atendimentos, diferente dos CAPS, que atendem menos pacientes, já que se ocupam de casos mais graves e de cuidados mais complexos. Outro grande problema do antigo modelo assistencial era a ausência dos Hospitais Psiquiátricos na RAPS, com o consequente fechamento irresponsável desses Serviços. Quanto às Comunidades Terapêuticas, em que pese terem composto a RAPS desde a sua criação, tais Serviços eram negligenciados e marginalizados pelo Ministério da Saúde.

Esse cenário de manejo ideológico e inconsequente dos Hospitais Psiquiátricos e Comunidades Terapêuticas por parte do Ministério da Saúde levou a consequências nefastas na atenção aos pacientes que apresentam transtornos mentais e dependência química graves agudizados.

Em decorrência dos graves problemas apresentados acima (Gestão e Modelo Assistencial), os péssimos Indicadores de Resultados da “Antiga Política Nacional de Saúde Mental” eram patentes: crescimento sustentado das taxas de suicídio no país nos últimos 15 anos; aumento de indivíduos com transtornos mentais graves em situação de rua; encarceramento de pacientes com transtornos mentais graves; aumento da mortalidade de tais pacientes; superlotação de serviços de emergência com pacientes aguardando vaga para internação; aumento do uso de drogas e dependência química no país; crescimento e expansão das Cracolândias em grande parte das cidades brasileiras; aumento de pacientes afastados pela Previdência Social, principalmente por depressão e dependência ao crack.

Assim sendo, diante desse grave diagnóstico e de suas consequências devastadoras para pacientes e seus familiares no Brasil, os Gestores do SUS pactuaram e publicaram, em Dezembro de 2017, a “Nova Política Nacional de Saúde Mental” (Resolução CIT No. 32/2017 e Portaria MS No. 3.588/2017), com o objetivo de tornar o tratamento mais acessível, eficaz, resolutivo e humanizado. O objetivo era fazer com que pacientes, dos casos menos complexos aos mais graves, tivessem acesso a tratamento efetivo no SUS.

A “Nova Política Nacional de Saúde Mental” contou com o apoio de mais de 70 entidades da sociedade civil, dentre elas de representação de pacientes e familiares, gestores, profissionais de saúde, acadêmicas e científicas.

A Política Nacional de Saúde Mental compreende as estratégias e diretrizes adotadas pelo país, com o objetivo de organizar a assistência às pessoas com necessidades de tratamento e cuidados específicos em Saúde Mental.

Dentro das diretrizes do SUS, propõe-se a implantação de uma Rede de serviços aos usuários que seja plural, com diferentes graus de complexidade e que promovam assistência integral para diferentes demandas, desde as mais simples às mais complexas/graves. As abordagens e condutas devem ser baseadas em evidências científicas. Porém, a “Antiga Política Nacional de Saúde Mental” não seguia tais preceitos.

Assim, a “Nova Política Nacional de Saúde Mental” ampliou a RAPS, que passou a contar com Hospitais Psiquiátricos, Hospitais-Dia, Ambulatórios de Saúde Mental e uma nova modalidade de CAPS, o CAPS IV Álcool e Drogas, além dos antigos Serviços já existentes, com o objetivo de ofertar uma variedade de cuidados, que pudessem dar conta das diferentes necessidades dos pacientes. As ações foram construídas conjuntamente entre os gestores do SUS, conhecedores dos graves problemas pelos quais os pacientes e seus familiares vinham enfrentando no Brasil.

A RAPS passou a ser formada pelos seguintes pontos de atenção (Serviços):
– CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), em suas diferentes modalidades;
– Serviço Residencial Terapêutico (SRT);
– Unidade de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil);
– Enfermarias Especializadas em Hospital Geral;
– Hospital Psiquiátrico;
– Hospital-Dia;
– Atenção Básica;
– Urgência e Emergência;
– Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental
– Comunidades Terapêuticas.

Com as novas ações do Ministério da Saúde, as SRTs também passaram a acolher pacientes com transtornos metais em outras situações de vulnerabilidade, como aqueles que vivem nas ruas e egressos do sistema prisional.

Outra novidade foi levar o poder público às áreas de maior vulnerabilidade social e promover o atendimento mais próximo do cidadão: foi criada nova modalidade de CAPS (IV Álcool e Drogas) para funcionar 24 horas, nas regiões de Cracolândias (cenas abertas de uso de drogas).

Além disso, o atendimento ambulatorial também passou a ser incentivado. Para tanto, o Ministério da Saúde começou a custear Equipes Multiprofissionais especializadas em Saúde Mental para atuarem em Ambulatórios, ocupando um vazio assistencial que existia na RAPS. As Equipes Multiprofissionais para atendimento Ambulatorial podem ser alocadas em Clínicas e Ambulatórios, bem como em Hospitais Psiquiátricos e Gerais.

Outro grave problema a ser enfrentado era a falta de Leitos Psiquiátricos especializados e atendimento qualificado nos Hospitais Gerais. Com a “Nova Política Nacional de Saúde Mental”, para a internação psiquiátrica em Hospitais Gerais, começou a ser exigida a presença de profissionais especializados (incluindo médico psiquiatra) em Enfermarias Especializadas, o que passou a dar maior eficiência e qualidade no tratamento dos pacientes. Além disso, após nove anos, o valor pago pelas internações em Hospitais Psiquiátricos foi reajustado, medida que visou garantir atendimento adequado em tais Serviços. Os Hospitais Psiquiátricos também passaram a ter acesso ao Incentivo Financeiro do Programa 100% SUS, direito que lhes era negado. Ademais, as ações da “Nova Política Nacional de Saúde Mental” não tinham mais como objetivo o fechamento de Leitos e de Hospitais Psiquiátricos. O Brasil conta com uma cobertura deficitária nesta modalidade assistencial, devido às ações irresponsáveis de gestões anteriores do Ministério da Saúde. Somando leitos em Hospitais Psiquiátricos e aqueles em Hospitais Gerais, temos no Brasil uma taxa menor que 0,1 Leito por 1.000 habitantes, quando o preconizado pelo próprio Ministério seria de 0,45 por 1.000 habitantes. Este índice está bem abaixo da média de cobertura dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo reconhecidos impactos negativos quando tal índice fica abaixo de 0,3 por 1.000 habitantes. Assim, o Ministério da Saúde começou a corrigir este déficit.

Sobre as Comunidades Terapêuticas, entidades extremamente importantes para o processo de Recuperação de dependentes químicos, foi criado um grupo de trabalho interministerial, com membros dos Ministérios da Saúde, Justiça, Trabalho e Desenvolvimento Social, para estabelecer critérios para o funcionamento, expansão e financiamento desses Serviços. O objetivo foi garantir o acompanhamento do poder público, promovendo a oferta de cuidado de qualidade aos pacientes com dependência química acolhidos nessas entidades. A partir disso, o Governo Federal quase quadruplicou, no ano de 2019, o número de Vagas financiadas em Comunidades Terapêuticas, passando de 2.900 para 11.000, em cerca de 500 unidades em todo o país, garantindo capilaridade a esta Política Pública e aportando cerca de R$ 150 milhões/ano (ações realizadas pela nova Pasta do Governo Federal: Ministério da Cidadania).

Todas essas medidas atenderam a anseios de movimentos sociais, aos desafios enfrentados diariamente por profissionais da RAPS e às necessidades apontadas no diagnóstico inédito realizado pelo Ministério da Saúde no ano de 2017.

Juntamente com a expansão da assistência, o Ministério da Saúde passou a aprimorar o monitoramento e acompanhamento da Política Nacional de Saúde Mental, bem como estabelecer diretrizes e protocolos de assistência para que o atendimento aos pacientes acompanhados na RAPS fosse embasado em evidências científicas. Passou-se a trabalhar para oferecer tratamento realmente de qualidade aos pacientes, com respeito ao dinheiro público.

Além das ações assistenciais, o Ministério da Saúde também começou a atuar com maior vigor na Prevenção. Na frente de dependência química, o Ministério da Saúde passou a ajustar e fazer novos estudos dos Programas de Prevenção que vinham em curso. Isso, pois os estudos conduzidos a partir da aplicação desses Programas (Tamo Junto, Elos e Famílias Fortes) mostraram resultados bastante insatisfatórios, sendo que o Programa Tamo Junto chegou a causar ação iatrogênica. Os adolescentes que foram submetidos a esse Programa passaram a fazer uso mais precoce de Álcool. Esse fenômeno ocorreu, pois o Programa Tamo Junto foi traduzido para o português adaptado para a realidade brasileira seguindo concepções ideológicas e afastando-se de sua versão original, que é o Programa “Unplugged”. Esses resultados inaceitáveis foram detectados por pesquisas realizadas e publicadas pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

No que tange à Prevenção do Suicídio, o Ministério da Saúde lançou, em setembro de 2017, ações estratégicas nessa área. Publicou o primeiro relatório epidemiológico sobre o tema no país. Fez oficinas com a Imprensa para discutir e orientar sobre o tema. Ainda como parte dessas ações de Prevenção, foi realizado convênio, em março de 2017, com o Centro de Valorização da Vida (CVV). Por meio dele, as ligações ao CVV deixaram de ser tarifadas, o que levou a grande aumento na demanda. Para dar conta dessa nova realidade, o Ministério da Saúde aportou recurso financeiro para que a entidade passasse a se organizar nesse novo contexto. O Ministério da Saúde também passou a ter ações prioritárias de Prevenção do Suicídio, nos seis Estados do país com maiores taxas desse fenômeno, a saber, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Roraima e Piauí. O Governo Federal liberou R$ 1.440.000,00 para a realização de ações nesses Estados, que passaram a ocorrer por meio de trabalho em conjunto com os territórios, levando-se em consideração as especificidades locais.

O Ministério da Saúde incluiu máquinas de Eletroconvulsoterapia (ECT) no rol de equipamentos custeados pelo Fundo Nacional de Saúde. Tal medida visava ofertar assistência de qualidade e efetiva a pacientes que padecem de transtornos mentais graves, refratários e que muitas vezes colocam em risco a sua existência.

Não era mais possível aceitar que, baseando-se em questões meramente ideológicas, o sistema público de saúde não reconhecesse a importância da ECT no tratamento dentro do SUS. Tal abordagem terapêutica salva vidas e tem sua efetividade reconhecida por uma infinidade de pesquisas científicas, sendo método terapêutico reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Por exemplo, a ECT apresenta os melhores resultados terapêuticos no tratamento de pacientes com depressão grave, quando comparada a qualquer outra modalidade de tratamento.

É importante ressaltar que as mudanças descritas acima foram realizadas em obediência à Lei 10.2016/2001, que redirecionou o modelo da assistência psiquiátrica no Brasil e estabeleceu direitos dos portadores de transtornos mentais, incluindo dependentes químicos. Vale lembrar aqui que é direito do paciente “ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades”, de acordo com a Lei 10.216/2001, mostrando a necessidade de se ofertar tratamento aos pacientes, de acordo com suas necessidades, e complexidade de seus quadros clínicos. Diante disso, a RAPS foi ampliada, com a inclusão de novos pontos de atenção, com o objetivo de ser mais estruturada e equilibrada na oferta de tratamento e cuidado aos pacientes e seus familiares. Seguiram-se orientações das melhores práticas nacionais e internacionais para o atendimento da pessoa que apresenta transtorno mental, bem como de seus familiares. “A atenção equilibrada é essencialmente comunitária, mas os hospitais têm um importante papel de retaguarda… É importante coordenar os esforços de uma diversidade de serviços de saúde mental” (Thornicroft & Tansella, 2008).

Vale frisar que não há qualquer motivo para privar o paciente com transtorno mental de uma RAPS potente, poliárquica, com serviços de diferentes níveis de complexidade integrados e articulados. Assim sendo, não há nenhuma evidência, por exemplo, de que Ambulatórios de Saúde Mental, Hospitais-Dia, Hospitais Psiquiátricos devam ser excluídos da RAPS, em nenhum lugar do mundo. Basta estudar os Sistemas Públicos de Saúde Mental do Canadá (“British Columbia Mental Health Services”), Austrália (“Australian Mental Health Service Organisations”), França (Relatório Sumário – Saúde Mental na França – OMS), Alemanha (Brochura sobre o Sistema de Saúde Alemão – OMS) e Reino Unido (“National Health Services – UK – South London and Maudsley Trust”), por exemplo. Ou atentar para como são organizadas outras áreas da assistência no SUS, como cardiologia, ortopedia ou oncologia. Os Serviços devem, sim, seguir os princípios básicos de legalidade, ética, atendimento humanizado, qualidade e de atendimento baseado em evidências. As três esferas dos Governos devem atuar de forma orientadora e fiscalizadora, garantindo o seguimento das normativas vigentes. Os Serviços devem sempre ser regulados, fiscalizados e melhorados.

É importante ressaltar que a RAPS foi expandida e fortalecida, sem prejuízo de nenhum de seus componentes.

Novos componentes da RAPS, qualificação técnica dos Serviços e dos profissionais, incorporação das melhores práticas e melhoria da retaguarda para quadros clínicos agudos são medidas a favor dos pacientes e suas famílias e contra a cronificação, o desamparo, o abandono, o encarceramento e a morte precoce, ou seja, em defesa dos Direitos Humanos. Em última análise, são os portadores de transtornos mentais e suas famílias os principais interessados e afetados pela falta de recursos, falta de vagas assistenciais de qualidade e falta de uma Rede que contemple de fato as diferentes necessidades e cenários existentes na Saúde Mental.

Assim sendo, as mudanças e ações da “Nova Política Nacional de Saúde Mental” ocorreram em defesa do SUS, do cidadão e de seu direito a um atendimento efetivo, humanizado e de qualidade em Saúde Mental. O SUS passou a buscar uma Rede assistencial equilibrada, ofertando tratamento, de acordo com as necessidades dos pacientes e seus familiares.

Assim, a política pública passou a se adequar às demandas dos pacientes, e não o contrário.

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