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A guerra da ilusão perdida

O barulho ensurdecedor do motor do Hércules da FAB, que taxiava no Aeroporto dos Palmares, não abafou o som da banda de música, que executava a “Canção da Infantaria”; todos se mostravam ansiosos – para a maioria era a primeira viagem de avião. Destino: Marabá-PA.

O barulho ensurdecedor do motor do Hércules da FAB, que taxiava no Aeroporto dos Palmares, não abafou o som da banda de música, que executava a “Canção da Infantaria”; perfilados, os militares alagoanos repetiam num coral afinado – “Nós somos estes infantes, cujos peitos amantes, nunca temem lutar. Vivemos, morremos, para o Brasil nos consagrar”. Todos se mostravam ansiosos – para a maioria era a primeira viagem de avião. Destino: Marabá-PA, com escala em Fortaleza. Missão: promover uma varredura na margem esquerda do Rio Araguaia, desde Xambioá até São Domingos.

O histórico da viagem estava na prancheta que os oficiais exibiam, mas faltava o detalhe mais importante; a tropa poderia ser submetida a batismo de fogo – a guerrilha era real; cerca de 60 guerrilheiros treinados pelo PCdoB atuavam na região desde o final da década de 1960, conheciam o terreno e as pessoas. Os militares alagoanos não sabiam disso; o dilema vivido pelo exército era crucial – se contasse a verdade a notícia da guerrilha se espalharia com o crivo da versão oficial, ou seja, do exército. Na visão do governo militar, isto tinha duas implicações: poderia estimular outros movimentos contestatórios do regime e trazer pânico à população, além, obviamente, do reconhecimento oficial do estado de guerra.

RECONHECIMENTO

A Guerrilha do Araguaia foi debelada em 1975, pela Brigada de Pára-quedistas do Rio de Janeiro, tropa profissional comandada pelo general Hugo Abreu. Quase todos os guerrilheiros foram mortos – quem escapou foi poupado como recompensa à delação dos companheiros, como foi o caso de José Genoíno (o Geraldo). O tempo passou e os militares alagoanos aguardam agora o reconhecimento oficial pelo risco que enfrentaram na selva amazônica – muitos recrutas, principalmente do Piauí, morreram no primeiro combate. “Nós realizamos operações de riscos, como cercos a casas em plena floresta e a vigilância diária, durante os dois meses que passamos lá, nas margens do Araguaia; ninguém subia nem descia o rio sem a revista rigorosa. Tudo isso conta e acho que o governo poderia olhar para a gente, reconhecendo o nosso trabalho”, pediu Nilo.

Mas, ao contrário do que o ex-militar espera, a situação é de silêncio completo. O tabu que é mantido até hoje deve perdurar por muito tempo, pelo menos até quando o exército insistir em negar o conflito. “Não tem como negar, muita gente morreu. Eu não vi ninguém morrer, não troquei tiro com ninguém, mas a gente sabia que estava enfrentando uma situação diferente daquela vivida nos treinamentos em Maceió. A gente usava munição real; enquanto estivemos no Araguaia ninguém usou festim (munição inofensiva usada em simulações). Era bala de verdade. Eu só soube que morreu gente, dos dois lados, depois, quando a imprensa começou a falar da Guerrilha do Araguaia”, concluiu Nilo, que ainda tem a esperança de ser reconhecido como combatente.

AS ARMADILHAS

Nilo, que lidera com outros companheiros o movimento para serem reconhecidos como combatentes em situação de guerra real, trata do assunto em nível jurídico – no ano passado, eles se reuniram em assembléia no Ginásio do Iate Clube Pajuçara, mas é cauteloso; todos sabem que o tema fere sensibilidades, principalmente pelas atrocidades cometidas contra a população civil da região. “Em Marabá havia tropas do exército, da marinha, da aeronáutica, da polícia federal e da polícia militar do Pará, mas a responsabilidade da ação era do exército, tanto é que coube ao general Hugo Abreu o comando da operação que esmagou a guerrilha, em 1975”, observou Nilo.

O ex-soldado recorda que, durante as instruções preparatórias da ação de varredura executada pela tropa alagoana, quando os oficiais alertavam para os riscos das armadilhas montadas na selva, o enfoque que se dava era para atuação dos guerrilheiros vietcongs, que massacraram o exército norte-americano no Vietname, apesar do armamento obsoleto. “O instrutor mostrava como improvisar um morteiro usando tronco de bambu; mostrava como se preparava um tipo de armadilha camuflada na estrada para surpreender o soldado. Era uma espécie de gangorra; numa das extremidades havia uma estaca pontiaguda melada com fezes humanas; o soldado distraído pisava no buraco e a estaca cravava à altura do tórax; os que não morriam imediatamente, morriam depois de gangrena”.

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