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Servidão intelectual do jornalismo brasileiro

O blog publica, com exclusividade em Alagoas e especialmente encaminhado a este espaço, artigo do professor José Marques de Melo sobre seu livro: "Jornalismo: compreensão e reinvenção", a ser lançado no início de 2009.

O alagoano de Santana do Ipanema, uma das referências na América Latina do jornalismo, discute o papel da imprensa e a sincronia com os leitores. Texto para comunicólogos, não comunicólogos e aqueles que não são da área, mas tentam compreender o processo de produção da notícia, nem sempre em tom harmônico dentro das redações.

Demanda precoce

Há mais de um século a educação dos jornalistas vem desafiando a sociedade brasileira.

A demanda floresceu no caldo de cultura gerado pela mercantilização da imprensa.

As gráficas substituíam utensílios manuais, artesanalmente manipulados, pelo maquinário industrial, movido a eletricidade.

Os jornais deixavam de ser correias de transmissão dos partidos políticos para se converter em empresas auto-sustentáveis.

A sociedade requeria profissionais competentes para produzir notícias de interesse coletivo e comentários sintonizados com as aspirações do público leitor.

Providência tardia

Onde formá-los? Evidentemente na universidade. Já em 1908, Gustavo de Lacerda, ao fundar a ABI, reivindicava tal providência.

Contudo, a academia só abriu suas portas aos jornalistas, 40 anos depois. As primeiras escolas funcionaram em São Paulo (1947) e no Rio de Janeiro (1948).

O Brasil vem acumulando, durante seis décadas, experiência na formação universitária de jornalistas. Construiu uma matriz pedagógica que lhe confere singularidade no panorama mundial.

Tanto assim que a revista Journalism: Theory, Practice and Criticism, publicada simultaneamente em Washington, Londres, New Delhi e Singapura, dedica sua próxima edição (Vol. 10-1, 2009) ao caso brasileiro.

Mesclando o padrão europeu (estudo teórico) com o modelo americano (aprendizagem pragmática), logramos uma via crítico-experimental de ensino-pesquisa.

Fábricas de diploma

O sistema é perfeito? Absolutamente não. Tem muitas fragilidades. Mas pode ser melhorado. Basta vontade política e compromisso educativo.

Carente de maior interação com o mercado e a sociedade, muito nos beneficiaria o restabelecimento do estágio, condição necessária para oxigenar o treinamento profissional.

Refinando o controle da qualidade do ensino, através de parcerias das universidades com as empresas e os sindicatos, arbitradas e mediadas pelo MEC, lograríamos separar o joio do trigo, colocando em quarentena as “fábricas de diploma” (escolas de baixo nível).

A verdade é que a reserva de mercado para os jornalistas diplomados contribuiu para a expansão das escolas de jornalismo, influindo na mudança da postura ética adotada pela mídia, em todo o território nacional. Estima-se que mais de 300 cursos superiores estão funcionando no país. Mas também é preciso reconhecer que a lei do diploma favoreceu a proliferação de escolas de segunda classe. Acomodadas ao rito cartorial de expedir passaportes para o mercado de trabalho, nem se preocupam com as demandas ocupacionais, nem buscam acumular conhecimento jornalístico.

Modelo mestiço

Apesar dessa contradição, o Brasil cunhou uma matriz didático-científica autônoma, refletindo melhoria na competência pedagógica e na capacidade investigativa em instituições de vanguarda. Trata-se de modelo mestiço, como o é a nossa cultura nacional, sedimentado no tripé – conhecer, experimentar, pesquisar.

A etapa cognitiva articula-se em função de dois eixos: as matérias que fundamentam os processos de codificação e os conteúdos a serem difundidos (humanísticos, comportamentais, gerenciais, tecnológicos etc.) e as interdisciplinas que pretendem explicar os fenômenos comunicacionais (da sociologia da comunicação à filosofia crítica e aos estudos culturais).

Mas o espaço privilegiado da aprendizagem corresponde aos laboratórios didáticos (estúdios, oficinas, estações, agências). Ali se concretiza o pragmatismo criativo, através da aplicação das técnicas jornalísticas ou de simulações didáticas e exercícios práticos. Monitorados pelos docentes, os alunos testam produtos que circulam e repercutem em audiências reais. A infra-estrutura laboratorial que dá sustentação à fase experimental do processo tem sido objeto de regulamentação por parte do MEC. É com base na sua composição e disponibilidade, além de outros fatores, que os cursos são autorizados e reconhecidos.

O circuito se completa com o fomento à pesquisa, através de projetos de iniciação científica ou de estudos avançados. Bolsistas recém graduados, postulando oportunidades na vida acadêmica, convergem cada vez mais para programas de mestrado e doutorado. Mas estes denotam pouca sintonia com as demandas da graduação, produzindo conhecimentos distanciados das atividades profissionais, salvo algumas exceções.

Inclusão educativa

O jornalismo adquiriu maior complexidade, principalmente em função da convergência midiática e das transformações da sociedade. Por isso, torna-se urgente repensar as estratégias investigativas da pós-graduação para sintonizá-las com as prioridades cognitivas do novo século.

Precisamos, imediatamente, vencer a secular batalha pela inclusão educativa das maiorias incultas e iletradas que povoam o território nacional. Trata-se de criar e experimentar formatos jornalísticos que, potencializando as novas tecnologias, sejam capazes de catalisar o saber popular, estimulando o apetite cognitivo dos que estacionaram à margem da cultura impressa.

Nesse sentido, nada mais oportuno que o depoimento do diretor editorial da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho ao Fórum Mega-Brasil Mitos e Verdades do Brasil: Visões da Mídia “Nós fazemos um jornalismo muito cifrado. Usamos o mesmo repertório, porque escrevemos para nossos pares, para nossos amigos, para as pessoas que conhecemos, na crença de que dessa forma estamos escrevendo para todos. E a verdade é que, infelizmente, pouco sabemos do leitor real, do que ele quer. E o que acontece é que há aí uma distância abissal entre o que oferecemos e o que deveria ser oferecido”. (Jornalistas & Cia., São Paulo, 28/11/2008).

Distorções congênitas

O modelo vigente já não atende às aspirações nacionais nesta conjuntura de acelerada mutação tecnológica e de transformações velozes na vida cotidiana, engendrando novos processos de produção e difusão jornalística.

Capitalizando meio século de imersão em atividades jornalísticas, tenho consciência de que o nosso ensino do jornalismo precisa ser reinventando para superar, entre outras, duas distorções congênitas:

1) Romper a tradição gutenbergiana que nos tem mantido prisioneiros de estruturas tecnologicamente anacrônicas que ainda governam a lógica dos processos de ensino-aprendizagem. Precisamos potencializar os recursos oferecidos pelas novas tecnologias digitais, formando profissionais vocacionados para produzir conteúdos jornalísticos de interesse do conjunto da sociedade, inclusive dos contingentes que permanecem excluídos do banquete civilizatório. Isso corresponde a priorizar os modos de expressão jornalística através do som e da imagem, sem evidentemente descuidar o código verbal.

2) Ultrapassar a caricatura balzaquiana que nos tem induzido a privilegiar a formação aristocrática de jornalistas comprometidos com os interesses das elites cultas ou medianamente educadas. Precisamos engendrar estratégias discursivas sintonizadas com o repertório das populações desinformadas e aplicar táticas motivadoras do apetite cultural daqueles bolsões marginalizados da sociedade de consumo. Do contrário, nossa Sociedade do Conhecimento será também uma caricatura, perpetuando a Sociedade dos Conhecidos (aquela que nos governa secularmente). Para tanto, precisamos tomar como referência também a cultura popular, ao invés de persistir no domínio exclusivo da cultura erudita.

Sair do gueto

Como lograr essa transformação? Trata-se de compromisso que está a desfiar o espírito público da nova geração de educadores e investigadores do jornalismo.

Cabe a esse segmento da comunidade acadêmica, em sintonia com o mercado e a sociedade civil, romper as paredes do gueto universitário, repensando o esgotamento do nosso modelo de jornalismo. Só assim poderemos incluir cognitivamente o vasto contingente que o jornalista venezuelano Eleazar Diaz Rangel com muita sensibilidade denominou “pueblos subinformados”.

Formar profissionais capazes de superar essa situação-limite e pesquisadores engajados na produção de conhecimento empírico, socialmente utilitário e culturalmente relevante, constitui o ponto de partida. Trata-se, afinal de contas, de romper a servidão intelectual que nos tem condenado a mimetizar padrões estéticos e reproduzir modelos forâneos, sempre de costas para o legado das gerações que nos precederam.

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