Médicos travestis e transexuais vão poder usar nome social

Conselho de Medicina de SP deve aprovar uso nome social até setembro. Para Alice Quadros, identidade de gênero só será respeitada com lei.

Marcelo Brandt/G1alice_quadros_2

É escoltado por dois parênteses, e ao lado do nome de registro, que o nome social Alice Quadros foi grafado em alguns dos documentos internos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo desde que a jovem assumiu sua identidade de gênero.

Fora do papel, a inclusão tem valor de conquista para a população transgênero. Mas, por conta da forma, segundo Alice, oferece poucas garantias. Ela já foi chamada pelo nome de registro no ambulatório da faculdade e até em sala de aula, durante confirmação de presença. “Nome social é interessante, sim, mas é um retalho de direitos”, defende.

Alice acredita que para mudar paradigmas e avançar no debate, é preciso, primeiro, entender que o gênero é construído socialmente.

“Eu nasci menina. Isso não significa a genital, os hormônios que eu tenho. Eu odeio falar em transição. Eu não era uma coisa e virei outra. (…) A minha identidade enquanto mulher é invalidada por um eu não ter uma vagina”, explica.

Em órgãos públicos federais, como universidades, o nome social é assegurado por lei a estudantes travestis e transexuais. Este ano, algumas entidades de classe incluiram o tema no debate e caminham para regulamentá-lo.

É o caso da Ordem dos Advogados do Brasil, que aprovou resolução em âmbito nacional em maio, e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), que até setembro deve permitir médicos travestis e transexuais a usarem o nome social no exercício da profissão.

“É incontestável que isso seja um avanço. Traz muitos benefícios na questão da exposição mesmo. Agora, a grande questão é de como isso será colocado. ‘Ah, a gente agora aceita o uso do nome social’, mas aí faz que nem a minha faculdade e coloca o nome social com o de registro do lado”, analisa Alice.

Superação
Estudante de medicina de 23 anos, ela diz ter consciência de sua identidade feminina desde criança. “Antes de eu me assumir me vestia segundo pressões sociais. Me vestia com roupas que são socialmente estabelecidas para homem. Eu pensava e me reivindicava enquanto trans mais ou menos aos 11 anos. Mas só tive coragem de fazer aos 22”, recorda.

Submeteu-se às definições de gênero pré-estabelecidas até que o receio da violência externa passou a ser menor que o sofrimento interno. “A partir de um momento isso começou a pesar na minha sanidade mental, de não ser eu mesma, e eu passei a assumir minha identidade de forma plena. Eu sempre fui mulher, eu só não era assumida”, ressalta.

Em meados de 2015, já no segundo ano do curso, decidiu iniciar o tratamento com hormônio e encarar os preconceitos ainda inerentes à transexualidade.

“Passei por um processo de me aceitar, de começar a achar minha identidade, o meu corpo. Porque se assumir dentro de uma sociedade transfóbica não é fácil. Você pode ser mandada embora de casa, muito provavelmente não vai conseguir adentrar o ensino superior – eu consegui porque eu tive meus privilégios, e eu me assumi dentro da faculdade –, vai ter problemas no mercado de trabalho”, enumera.

A estudante transexual Alice Quadros vai se formar em medicina pela USP (Foto: Marcelo Brandt/G1)
A estudante transexual Alice Quadros vai se formar em medicina pela USP (Foto: Marcelo Brandt/G1)

Nesse período, revela que já sofreu duas crises depressivas intensas por ser uma das poucas – se não a única – trans no curso de medicina da USP. “Já fui agredida por colegas verbal e fisicamente dentro de sala de aula. Muitos professores são transfóbicos, não têm informação sobre isso, não existem pessoas trans dentro da universidade”, alerta.

Apesar das dificuldades, segue tentando se impor para que não apenas o nome que lhe traduz seja respeitado. “A gente tem que buscar meios de garantir isso e de continuar avançando nessa pauta. A luta de pessoas trans não se esgota dentro do nome social.”

Lei João Nery
Para a estudante, a população trans terá sua identidade validada quando os processos de alteração de nome forem menos burocráticos e deixarem de ser humilhantes.

Hoje, é necessário recorrer à Justiça para solicitar a mudança nos documentos. Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, no estado, nos últimos três anos, 203 pessoas pediram retificação de sexo, sendo 58 até julho deste ano, 87 em 2015 e 58 em 2014.

Alice acredita que somente com a aprovação do projeto de lei de identidade de gênero, ou “lei João Nery” (PL 5002/2013), do deputado Jean Wyllys (PSOL), o país terá mudanças, de fato, efetivas. João Nery foi o primeiro transexual homem a ser operado no Brasil.

O PL tramita na Câmara dos Deputados desde 2013 e tenta garantir à população trans o reconhecimento a sua identidade de gênero. A proposta também prevê minimizar os atuais processos necessários para obter documentos com o nome social – laudos que afirmam a transexualidade ou transgeneridade como transtornos psicológicos.

“A perspectiva de não conseguir me formar com o meu nome alterado é desesperadora. Eu fico pensando, eventualmente, dentro da conjuntura política, não sei se isso se agrava, de perder direito e chegar o momento em que eu vou ser agredida e meus documentos não valerem nada”, teme Alice.

Fonte: G1

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