Carta ao presidente

De Um Lugar Esquecido, em todos os dias de todos os anos.

Senhor Presidente,

Deixei em casa meus netos
chorando com dor
a dor negra da fome.
Em meu silêncio eu imploro,
nos meus olhos que choram secos, eu clamo!
Dá-me algo para que não morram de fome.
Só não me dê esperança,
nela não acredito mais.
Também não me dê promessa,
essa eu já faço aos meus Santos da devoção.
Mas diferente do senhor, eu cumpro.
Eu pago as promessas feitas.
Entrega aqui em minhas mãos calejadas,
um punhado de feijão
um quilo de farinha,
e um pouco de arroz.
Será que peço muito, doutor?
Além do voto que lhe dou em troca,
se ainda servir, muito mais posso dar.
Leve meu coração para o tal transplante,
para que em mim
não morra de dor.
Coloca o meu no lugar do seu.
E assim sentirá doutor, o quanto dói a nossa dor.
Se alguém precisa de estômago, leva o meu.
Dele não preciso não, senhor.
Até que vai me aliviar da dor da fome.
Se não tenho água pra beber, de que me servem os rins?
Leva para alguém que em casa a torneira derrama cristalina água em abundância, como já derramei lágrimas, quando elas ainda desciam pela minha face.
Se alguém estragou o fígado com o tal uísque,
salva essa pessoa com o meu.
Apesar de minha idade, ele quase não foi usado.
Não tinha comida para danificar.
Nem pinga tomava, pois dela não preciso pra zonzear e sonhar.
Pois já tinha comigo o delírio e fraqueza da fome.
Por um socorro aos meus netos, doutor.
Só não posso dar minha alma.
Essa eu preciso pra entregar a Deus, na presença de Padim Cícero.
Só não posso dar minha fé,
dela preciso para acreditar que um dia tudo vai mudar
Só não posso dar minha complacência
Dela preciso, para buscar uma maneira…
De lhe perdoar.
E aqui assino:
Uma sertaneja cansada de esperar.

*é desembargadora de Justiça e diretora-geral da Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas (ESMAL).

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