Eu, eu mesmo e minha filha que não me pertence…

Nunca fui espiritualista. No entanto, às vezes me deparo com alguns escritores que são bem diferentes da minha forma de encarar a realidade, mas que os leio com todo o respeito, desde que iniciei minha carreira de professor de filosofia em cursinhos pré-vestibular, antes mesmo de sair da faculdade de jornalismo. Um deles é Khalil Gibran. Uma de suas obras mais conhecidas é O Profeta. Extremamente fácil de ser encontrada e a preços módicos, nas livrarias da cidade. Da última vez que o vi, custava R$ 6,90.

Não lembro aonde. Mas, o fato é que ontem voltei a ler o tal espiritualista e me deparei com uma frase simples, mas que me impulsionou para um momento de reavaliar o que possuo, o que já ofereci aos outros e o que ganhei em troca. Pois bem, sempre saí vitorioso das grandes derrotas e só pude notar isto com o passar do tempo e – pasmem – sempre ganhei mais, quando mais pude me doar a amigos e pessoas que amo. Eis então a frase: “Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós”.

Estou eu sentado no sofá. Khalil em uma mão, uma xícara de café na outra. Em uma distância mínima, brincava num edredom vermelho estirado a pequena Beatriz. Pois é… minha filha não é minha e justamente por isto é o que de mais precioso ganhei. A cada dia sinto que ela mais aprende a ser sozinha e a cada dia eu passo a depender mais dela e não o inverso. Olho para minha esposa e penso: “Ela depende muito de nós”. Ledo engano até quando. Até o primeiro namorado, o primeiro emprego, o primeiro sei lá o quê.

Sinto uma linha de ligação, um fio tênue, entre mim e ela. Pergunto se este fio de sentimento realmente existe. Será? Só resta mesmo doar-me ao máximo por tudo aquilo que tenho a ganhar da pequena Beatriz, que diga-se de passagem, – muitas vezes para o meu desespero – não é minha. No entanto, quando largo o livro e deito no edredom vermelho com Bia, deixo para trás uma série de coisas. E naquele momento, em que parecemos duas crianças – confesso que às vezes me sinto meio idiota com as coisas que minha filha me coloca para fazer – percebo que ganho vida nova. Sou apenas eu naquele momento.

Despejo tudo que finjo possuir. Ali eu não sou jornalista, professor, não tenho conta em banco, nem salário, nem qualquer outra coisa. Eu tenho e ao mesmo tempo não tenho Beatriz, mas de fato me tenho, porque possuo um sentido, coisa que sempre me faltou enquanto existencialista (leitor de Sartre de carteirinha). Acabaram as perguntas naquele instante, não porque encontrei respostas, mas porque não há necessidade para elas.

Naquele edredom vermelho e entre brinquedos, somem as perspectivas, as especulações. Como é bom me encontrar comigo mesmo e rever a minha capacidade. Sentir-me. Espiritual talvez seja apenas a nossa condição subjetiva. Talvez. Nunca fui de defender muito a existência de um Deus. No entanto, com Beatriz, subjetividade é sermos um, pelo menos para mim. É saber que mesmo ela não sendo minha e que eu – na ignorância humana – também confunda a função de pai com a de dono, vejo alguém ao meu lado e sei que não preciso me preocupar com nada. São poucos os momentos em que apenas somos. É um único o momento em que resgatamos a nossa ingenuidade.

Beatriz vai crescer, vai sair de casa, mas vai me dar netos, mesmo eu tendo pavor da idéia de um dia ela ter um namorado. Ela nunca será minha, como nunca foi. Mas o meu eu, que às vezes nem a mim mesmo pertence, é inteiramente dela.

Fonte: * É jornalista e professor

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