Conheça o dentista que colocou a Islândia nas quartas da Eurocopa

JAN KRUGER/UEFA VIA GETTY IMAGESHeimir Hallgrimsson carrega Skulason nos ombros depois da Islândia eliminar a Inglaterra

Heimir Hallgrimsson carrega Skulason nos ombros depois da Islândia eliminar a Inglaterra

Se os 4.135 habitantes de Heimaey se agrupassem, eles provavelmente caberiam dentro do campo de futebol coberto da ilha. Nessa hora de almoço, porém, há apenas três ou quatro crianças jogando bola, e, quando Heimir Hallgrimsson faz menção de sair, um garoto cobra um escanteio na rede pelo lado de fora do gol perto da saída.

Isso é totalmente perdoável: o menino tem 7 ou 8 anos, e o técnico da seleção da Islândia o chama pelo nome, consolando o pequeno com um carinho na cabeça e algumas palavras ternas. Encontrar conexões entre as pessoas na ilha principal é até fácil, mas, nessa ilhota de 8,3 km² formada por uma erupção vulcânica, parte do arquipélago de Vestmannaeyjar, as pessoas conhecidas estão a cada esquina.

“É claro que eu o conheço “, diz Hallgrimsson, enquanto encara o vento. “Eu sou o dentista daqui, afinal de contas…”.

Da sala de espera no consultório de Hallgrimson, localizado em sua própria casa, dá pra ver dois terços da ilha. Há janelas grande sem três dos quatro lados: à direita, a vista das rochas onde sua família possui uma casa de verão de difícil acesso. Ao centro, o pequeno porto. À esquerda, o dramático pico de Blanditur, e atrás dele descem os pequenos aviões que chegam da capital Reykjavik.

“É aqui que todas as decisões importantes são tomadas”, ele conta, sorrindo. E houve muita coisa a se ponderar na última meia década.

Hallgrimsson, que era um treinador de sucesso tanto com a equipe masculina quanto feminina do time local IBV, é, há dois anos e meio, o técnico da seleção islandesa ao lado do veterano sueco Lars Lagerbakc, depois de um período de dois anos como assistente.

A combinação da experiência estrangeira e do conhecimento local formaram o todo perfeito: eles levaram a Islândia a uma inimaginável classificação para a Eurocopa 2016, e fizeram isso de uma maneira em que Hallgrimsson conseguisse, ao mesmo tempo, continuar trabalhando como dentista, exatamente no andar debaixo de onde estamos sentados.

“Eu costumava trabalhar no consultório entre 8h da manhã e 15h da tarde. Depois, ia para o treino do IBV às 17h”, ele recorda. “Meu dia todo era trabalho. Quando comecei na seleção, eu comecei a diminuir o ritmo, e este ano cuidarei de poucos dentes. Eu trabalho um dia vez ou outra, talvez uma vez por semana, só para manter minha mão e meu cérebro funcionando. Mas eu nem marco mais consultas. Eu só peço à minha secretária para preencher o dia, e tem muita gente que vem me visitar, porque só gostam de mim como dentista delas”, relata.

O trabalho de Hallgrimson como dentista vai ficar completamente parado durante a campanha islandesa na Euro. Certamente não há nenhum outro dentista entre os técnicos do torneio, e certamente não há nenhum outro treinador que more numa comunidade tão remota quanto Heimaey. Enquanto isso dá uma pista do tamanho da façanha desse país, também deve ser usado para olhá-los como alguém que está levando o futebol muito a sério.

A Islândia nunca havia chegado perto de ir a um grande torneio antes de Lagerback e Hallgrimson assumirem e, com uma população de 330 mil habitantes, nem tinha a expectativa de conseguir. O sucesso deles, que veio após uma apertada derrota para a Croácia nos playoffs de classificação para a Copa do Mundo, foi o resultado na mudança de mentalidade do futebol do país.

“Nós sabíamos que tínhamos um trabalho bem difícil”, admite Hallgrimson. “Sinceramente, não acho que ninguém, nem mesmo na Federação, esperava que a gente fosse chegar tão longe. E também acho que os jogadores do passado não levavam a seleção tão à sério quando os caras que estão hoje. Mas o Lars tinha uma visão calra de como as coisas deveriam ser feitas, e o que estava faltando para a Islândia. Ele tinha um modelo de como nós deveríamos trabalhar, treinar, jogar, falar e se comportar, e antes não havia isso”, recorda.

“Por exemplo, se eu tivesse assumido antes e Eidur Gudjohnson dissesse para mim: ‘É assim que fazermos no Barcelona’, eu teria dito: ‘É, você está certo, vamos mudar e fazer igual’. Seria o mesmo com qualquer de nossos jogadores que atuam em grandes clubes. Mas nós aprendemos com o Lars que, quando você lida com pessoas diferentes, que são treinadas de maneiras diferentes e todos acham que seu jeito é o certo, você deve ter uma regra clara: ‘É assim qeu fazemos aqui’. Nós precisávamos disso. Um treinador amador da Islândia provavelmente não teria ganho o respeito necessário do elenco no passado”, afirma.

Ele admite que o processo levou tempo, e nem todos pularam no navio de imediato, mas a Islândia agora tem um time em que todos lideram por exemplo e os resultados, que incluem um segundo lugar no grupo A das eliminatórias para a Euro-2016 após vitórias em casa e fora contra a poderosa Holanda, têm sido impressionantes.

“A construção do espírito de equipe é essencial para um país como o nosso. Nós só conseguimos ganhar dos times grandes se trabalharmos como um”, filosofa Hallgrimson. “Se você analisar nosso time, nós temos caras como Gylfi Sigurdsson no Swansea, que é provavelmente nosso jogador mais famoso, mas ele é o cara que trabalha mais pesado no campo. Se esse cara é o que trabalha mais duro, quem no time pode ser preguiçoso? Nós temos um cara como Eidur (Gudjohnson), que ganhou a Champions League e jogou por Barcelona e Chelsea. Ele vem sendo reserva nos últimos três anos, mas é um cara que dá muito apoio desde o banco de reservas. Então, como os outros não vão se comportar da mesma forma? Isso só mostra quão boa é a mentalidade desses caras”, elogia.

Lições foram tiradas de cada tropeço. Hallgrimson ainda fica frustrado quando pensa no jogo contra a Croácia, em que seu time perdeu por 2 a 0 no placar agregado. Ele acredita que a Islândia “se perdeu em tanta animação”, e que a preparação para o jogo foi “maluca”. Antes da partida de ida, o time foi convidado para almoçar com o presidente do país, Olafur Ragnar Grimsson, e a imprensa teve acesso total aos treinos. Esses erros custaram caro, mas, mesmo assim, a Islândia já deu mostras de quem em breve conseguiria algo grande.

“Uma coisa que tiramos dos jogos contra a Croácia foi que ficamos tão perto da Copa do Mundo que aí passamos a acreditar que dava para chegar à Euro”, lembra Hallgrimson. “A gente não ficou triste, porque perdemos para um bom time, mas os caras passaram a ter certeza, muita certeza, que daria para ir até o final dessa vez. Foi até fácil dizer para eles, no começo das eliminatórias, que eu tinha certeza que chegaríamos à Eurocopa”, conta.

Foi mais fácil ainda repetir essa previsão no meio da campanha o grupo A.

“Não sei se deveria dizer isso, mas vou dizer de qualquer forma…”, brinca Hallgrimson. “Nós começamos tão bem que, depois dos primeiros cinco jogos, a Federação Francesa de Futebol nos enviou uma lista de 70 campos possíveis para usar de centro de treinamento durante a Euro. Lars e eu sentamos, escolhemos uns 10 que achamos que seriam bons para nós, aí mandamos três pessoas à França para dar uma olhada e diminuir a lista para três. Aí mostramos para os jogadores e falamos: ‘Onde vocês querem ficar quando classificarmos para a Eurocopa?'”, revela.

“Se a gente não tivesse se classificado, talvez eu olhasse para trás e diria que o tiro saiu pela culatra, que ficamos confiantes demais. Mas, para mim, foi como dizer: ‘Eu e Lars temos tantas confiança em vocês que gostaríamos de terminar logo esse negócio e ter certeza que vocês terão um lugar legal para ficar quando nos classificarmos’. E quer saber? No final, eles escolheram o que para mim foi a melhor opção de fato”, diz.

Antes do torneio, era estimado que até 10% da população islandesa viajaria à França para a Eurocopa. Por isso, a comissão técnica resolveu proteger os jogadores da euforia. Por isso, o time da Islândia foi para a pequena e quieta Annecy-le-Vieux, uma cidade à beira de um lago no leste do país.

Um dos primeiros atos de Hallgrimson como técnico da seleção, aliás, foi trazer de volta os torcedores que tinham perdido interesse pela equipe. Sua solução dá outra visão sobre as inovações que podem ser conseguidas nos dias de hoje através de gráficos e estatísticas.

“Quando começamos, não havia qualquer apoio dos fãs”, ele conta. “Então, fui ao fã clube dos torcedores, o Tolfan, e decidimos começar do zero. Eles têm um pub em Reykjavik. Eu disse a eles que, antes de todo jogo em casa, eu passaria lá umas duas, duas horas e meia antes do jogo e daria a eles um relatório do que iríamos fazer. Eles seriam os primeiros a saber os 11 titulares. No meu primeiro jogo, um amistoso contra Ilhas Faroe, apareceram umas 10, 12 pessoas. Eu mostrei o time, descrevi como iríamos jogar, mostrar o vídeo motivacional que fizemos para os atletas e fiz questão que eles assistissem ao mesmo tempo que os atletas”, relata.

“Agora, quando vou lá, não importa o jogo, já tem umas 400 pessoas. A cultura mudou. No passado, os islandeses não apareciam nem no apito inicial e nem depois do apito final. Agora, estão nas ruas com suas camisas, chapéus, bandeiras, e assistem à minha palestra. Eu acho que tive um grande papel em começar as coisas novamente. É muito incomum que um treinador de uma seleção apareça num bar assim. Talvez até seja meio coisa de maluco, porque sempre pode aparecer um bêbado que me dê uma pancada e eu acabe desmaiando. Mas aqui é a Islândia. A gente não teme ser um pouquinho diferente”, analisa.

Os fãs que foram à França tiveram que se contentar com um vídeo feito por Hallgrimson e seus colegas antes do torneio.

As pessoas que conhecem Hallgrimson o descrevem como uma pessoa de intelecto feroz, que está constantemente buscando aprender. Muitas vezes isso é procurado por meio dos computadores e das análises em vídeo, muitas das quais ele carrega consigo mesmo, já que não tem uma comissão técnica grande. Ele e Lagerback, 19 anos mais velho aos 67, se dão muito bem. Hallgrimson faz uma pausa e descreve o colega como “muito conservador”, mas não de maneira pejorativa.

“É porque eu sou mais jovem e também porque estou mais aberto a novas ideias”, explica Hallgrimson. “Lars é muito mais experiente, e não acho que exista qualquer situação em campo pela qual ele não tenha passado. É fantástico ter trabalhado com ele por quatro anos, porque nós nos comunicamos muito bem, e não importa se somos um pouco diferentes na maneira de agir ou de pensar. No final, a gente sempre concorda na coisa mais importante: ‘É assim que faremos as coisas hoje’. Eu acho que nos completamos bem e formamos um bom técnico”, brinca.

Houve muita coisa para aprender de Lagerback, a quem Hallgrimson conheceu quando estava fazendo o curso para tirar sua licença classe A da Uefa na Inglaterra, mas seu trabalho no como dentista também o ajudou, segundo ele mesmo diz.

“Trabalhar como dentista me ajudou muito, já que você está sempre se relacionando um-para-um”, disserta. “Muitas pessoas têm medo de ir ao dentista, então você tem que encontrar a maneira de falar com cada cliente individualmente. Você pode ter que relaxar um, ser engraçado com o outro, ser sério com o terceiro, mas você tem que se adaptar rapidamente. É a mesma coisa no futebol”, garante.

Hallgrimson é um excelente comunicador e um ótimo ouvinte. Em certo ponto, ele reflete que nossa extensa conversa lhe deu a chance de pensar e trabalhar questões que ele não havia feito a si mesmo anteriormente.

Talvez seja impossível não ficar aterrado em Heimaey, uma comunidade que poderia ter sido completamente exterminada pela lava de Eldfell, o vulcão ativo ao leste da ilha, que chegou tão perto da cidade como nunca em erupção em janeiro de 1973. Depois da Euro-2016, Hallgrimsson, provavelmente, vai passar a maior parte de seu tempo em Reykjavik, quando vai comandar a seleção depois da aposentadoria de Lagerback, mas diz que o sucesso no futebol jamais vai consumí-lo.

“Espero e tento não mudar, porque gosto muito do jeito que sou”, afirma. “É uma das razões por que é realmente bom voltar aqui para Vestmannaeyjar depois dos jogos, especialmente os jogos grandes, quando toda a imprensa quer falar com você, porque sou apenas mais um aqui. A opinião deles sobre mim não muda, por que eles sabem quem eu sou como pessoa. Nunca vou me considerar mais importante do que antes”, ressalta.

Em uma tarde com Hallgrimsson, você pode ver a mistura de humildade e autoconfiança que tem levado a Islândia tão longe dentro e fora de campo. Eles vão te dizer em bares e cafés de Reykjavik que essa é uma característica nacional: não há nenhuma razão que impeça de avançar para o mata-mata, com Portugal, Áustria e Hungria no grupo. Ficar no top 3 parece relativamente tranquilo.

A Islândia não terá os mesmos recursos que seus rivais – eles viajaram para a França com um estafe de apenas 20 pessoas, enquanto as “grandes seleções” terão equipes até cinco vezes maiores. Hallgrimsson, cujo laptop aberto no dia em que nos encontramos mostra que ele está analisando os dados da Hungria, pensa alto.

“Eu realmente acredito, do fundo do meu coração, que vamos passar por esse grupo”, brada. “A partir daí, nossos adversários serão, provavelmente, equipes melhores. Estatisticamente, não temos uma grande chance, mas nós mostramos que podemos jogar o nosso melhor contra essas equipes. Tudo pode acontecer, mas, primeiro, temos uma chance realista de classificação, e isso seria fantástico para a Islândia”, prevê.

Espera-se que aqueles que aguardam pacientemente para serem atendidos pelo seu cirurgião dentista favorito em Heimaey devem perdoá-lo por uma possível espera prolongada…

Artigo publicado em 13 de junho de 2016. Para ler o original, clique aqui.

Fonte: ESPN

Veja Mais

Deixe um comentário

Vídeos