Papa e o constrangimento dos liberais: a falsa meritocracia e a obrigação de solidariedade

Quando o Papa Francisco mencionou na Jornada Mundial da Juventude que, para algumas pessoas, a palavra “solidariedade” era um palavrão, não o fez sem motivo ou propósito.

É que a obrigação de ser solidário entra em choque direto com a teoria liberal, que está, nos últimos anos, aparecendo no Brasil. Para os liberais, a ajuda aos pobres e minorias sociais não seria uma obrigação estatal e nem individual, mas sim, uma voluntariedade beneficente.

Eis algumas pautas do liberalismo: diminuição da carga tributária, redução do âmbito de atuação do Estado (especialmente nos direitos sociais), privatizações e individualismo.

Discussões surgem por meio de redes sociais, blogs, livros e debates de botequim.

Seguem alguns pensamentos dos liberais colhidos na internet:

1. Em uma crítica à carga tributária e aos benefícios sociais, Joseph Sobran elabora um exemplo em que um filho rico ganha 10 dólares para lavar um carro e ainda reclama que tem que doar 1 dólar para seu irmão e pagar impostos, ficando com pouco dinheiro pelo que trabalhou.

2. Existe um exemplo de um professor que divide o somatório das notas conseguidas por todos em uma sala de aula, desprezando a situação particular logicamente diferente de cada um, comparando a divisão de notas escolares à divisão de saúde e educação na sociedade, em que a diferença é muitas vezes entre a vida e a morte.

3. A ideia de que têm uns que trabalham para sustentar outros. Dr. Adrian Rogers

4. A ideia de que o Estado seria mera instituição criada pelos indivíduos para facilitar a consecução dos seus projetos individuais.

5. E a frase sensacional: “Governo, o amigo imaginário que ganha o crédito pelo seu sucesso, enquanto toma a riqueza que você produziu”.

A base de todo esse contexto defendido pelos liberais está em uma questão fulcral e decisiva: A MERITOCRACIA.

O termo “meritocracia” sempre teve significados diferentes ao longo da história da humanidade, tendo íntimas relações com parâmetros que favoreçam a classe dominante de cada época.

Na pré-história, o merecimento na apropriação de bens limitados era do fisicamente mais forte, o que deixava o mais fraco à mingua e sem meios de comer de se cuidar.

Depois, o merecimento era uma dádiva de Deus que legitimava as famílias reais a serem as donas dos corpos de seus súditos.

Trazendo essas situações para o contexto atual e utilizando o exemplo liberal tão mencionado de Joseph Sobran, eu pergunto: quantas pessoas no mundo têm a oportunidade de ganhar 10 dólares para lavar um carro? Que méritos tem o filho do dono do carro? Qual a moral que tem esse mesmo filho de reclamar que vai doar 1 dólar para seu irmão mais novo e de pagar tributos para que o Estado possa fazer justiça social?

Assim, o problema fulcral do individualismo está em saber se o mérito é justo ou não, e se os beneficiários têm uma obrigação moral de solidariedade.

Sem uma boa reflexão, somos levados a imaginar que os parâmetros estabelecidos de meritocracia na sociedade atual são certos, prontos, atualizados e inquestionáveis. Ora, em um jogo de futebol, é justo o time que jogou melhor perder? Em uma corrida, é justo o corredor (que tem a perna menor) perder para o atleta (que tem a perna maior) que se esforçou menos? Qual o critério mais justo em um concurso para o cargo de juiz: experiência de vida jurídica ou cursinhos preparatórios? As regras do jogo são justas? Todos esses questionamentos geram polêmicas e dúvidas, e se há dúvidas, a meritocracia é questionável.

Porém, os exemplos mais conhecidos disso são a seleção por meio do QI, bem como habilidades e esforços laborativos. Atualmente, poucos param para questionar esses critérios de seleção de apropriação de bens limitados, em que ganha a posição quem é mais intelectualmente preparado e/ou trabalha mais!

Peter Singer, famoso autor australiano, diz que há algo de errado na distribuição das posições sociais de acordo com o QI, pois se trata de critérios que são, em grande parte, determinados pela origem genética, sendo uma “forma arbitrária de seleção e que nada tem a ver com aquilo que as pessoas mercem” (Ética Prática. 2002, p. 58).

Ademais, soma-se ao QI e as habilidades laborativas circunstâncias familiares, psicológicas, econômicas e outras que influem decisivamente na vida de cada um separadamente, o que também abala seriamente o critério do merecimento justo em uma competição capitalista.

O que eu quero dizer é que não existe o critério de merecimento ideal e justo.

Assim, essas pessoas que conseguiram ter suas posses não podem dizer que mereceram tê-las, pois, como se vê, tal critério de merecimento é feito mediante uma loteria biológica, psicológica, circunstancial ou social, o que torna injusta a situação.

Por tudo isso, é que temos obrigações para com os pobres e não temos legitimidade nenhuma para dizer que temos liberdade de não ser solidário e deixá-los morrer de fome e de doenças.

Solidariedade é uma obrigação moral de todos nós (especialmente os mais ricos) e é por isso que existe o Estado para arrecadar tributos com o fim de fazer justiça social.

Nascer em família rica, nascer sem problemas de intelecto e não ter problemas familiares que possam abalar sua trajetória são circunstâncias que influenciam e não podem ser atribuídas como merecimento justo.

Nesse mister, é bom esclarecer à população que conceder oportunidade através do Estado é uma hipótese descartada no discurso dos liberais, pois eles atribuem à iniciativa privada a responsabilidade pela educação, saúde e outras atividades, o que exclui ainda mais grande parcela da população no Brasil.

Ora, é muito confortável defender o individualismo quando se teve, durante a vida, boas oportunidades sociais, físicas e psíquicas para merecer os bens da economia. Falar que produz riqueza ocupando injustamente espaços sociais e ainda reclamar que tem que repartir, pode soar esquisito, não é? Isso também se deve ao fato ser-humano, ao longo de sua vida, esquecer facilmente fatores ou pessoas que o ajudaram. Um comerciante liberal, por exemplo, dificilmente irá relacionar em seus arquivos de memória as pessoas e as circunstâncias comunitárias que o ajudaram a galgar uma boa posição econômica; ele só lembrará das fases duras, nunca se questionando se a loteria biológica e social o ajudou em seus “méritos”. Ele vai dizer que é merecedor e pronto! Não tem discussão.

O capitalismo selvagem (este sim não está submetido a regras sociais) está tão vivo em nossa cultura que nem sequer paramos para pensar e questionar os padrões de meritocracia atuais que ajudam a perpetuar a separação entre a casa grande e a senzala.

Aliás, é fácil notar que se tais critérios de merecimento não mais atenderem à classe dominante serão rapidamente substituídos por outro modelo liberal que garanta a continuidade da exclusão social entre ricos e pobres.

E olha que eu não quero nem adentrar nas consequências nefastas do neoliberalismo atual, em que famílias de banqueiros e grandes empresas estão, sem tutela alguma, mantendo-se ricas e prósperas no poder.

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