Para ensinar, caronas em caminhões de lixo

Em meio à lama, chegada a escola
Em meio à lama, chegada a escola

São seis e meia da manhã no bairro Sítio São Jorge, na capital alagoana, quando a serviços gerais Arlene Domingos desce do segundo ônibus, depois de sair de casa, para mais um dia de trabalho. Ela é funcionária da creche-escola Herbert de Souza (creche Betinho), que funciona dentro do Lixão da capital alagoana.

Ninguém se arrisca a chegar à escola a pé: a rua virou lama no inverno nordestino e há riscos de assalto.Por isso, ela pega "carona" nos caminhões que recolhem lixo ou nas carroças dos catadores de latinhas e plásticos. "Teve um dia que peguei uma carona na carroça para nunca mais.

Cheguei ‘quebrada’ na escola. O cabelo era só lama e uma parte da roupa também. Quando cheguei, fui me lavar para trabalhar. É assim", diz a funcionária. A professora Maria Anunciada e outros 23 funcionários seguem a mesma rotina e acompanham a carona em caminhões de lixo. "Sem a carona, a gente não chega na hora", completa Anunciada.

Às vezes, o transporte não vai até a escola. Então, elas descem 300 metros antes para uma caminhada dentro da favela do Lixão. "Temos muito medo, por isso a gente fala com todo mundo. As pessoas respeitam a gente. E quando tem tiro? É um problema, aja correr", explica. Na escola, são recebidas pela diretora Dilza Rocha. "O senhor está vendo, não é? Nossa escola funciona no lixo", aponta Rocha.

A creche Betinho funciona desde 2006, carrega o nome do ícone brasileiro no combate a pobreza, atende 110 alunos, todos filhos de catadores de lixo. Funciona dentro do Lixão da capital. Abertas as janelas, a visão é de uma montanha de toneladas dos restos dos quase um milhão de maceioenses. Os urubus rondam a escola, o mau cheiro é impossível de suportar e no verão, o calor atrair os insetos. Os caminhões de lixo passam na porta. Há dias em que a guerra entre os traficantes transforma a escola em uma trincheira: as professoras trancam as portas e se abaixam pelos corredores. Passado o susto, antes de escurecer, voltam para casa às pressas.

Sete da manhã e Naiane da Silva, de oito anos, traz os irmãos Carlos e Maricrislane para estudar: os três caminham 500 metros. "Todo dia venho para cá". Ela vai aproveitar a merenda: suco e bolacha ou pão, presunto e queijo com suco de manga. "São todos meus filhos. E as mães destes meninos também viraram minhas filhas. É engraçado. Brigo com elas quando não trazem os meninos para escola. E se eu souber que a mãe vai levar o filho para trabalhar catando lixo, vou lá brigar", afirma a diretora.

A creche-escola Betinho perdeu cinco funcionários há duas semanas. A Secretaria Municipal de Educação rompeu contrato com uma empresa de prestação de serviços. Uma professora desistiu de trabalhar na creche: "Quando ela viu o lugar, entrou em desespero. Não voltou mais. A gente soube que ficou doente", disse a serviços Arlene Domingos, que ganha salário mínimo, mas o pagamento está atrasado. Com os impostos, recebe R$ 320. "Não deixei a escola porque a diretora chora". Como assim? "Eu apelo, choro, peço por tudo para que ninguém deixe a escola. Tudo isso vai passar. Não posso fechar isso daqui nenhum dia. O que serão dos meus filhos? E das minhas filhas, as mães?". Não há argumentos para a pergunta da diretora.

O secretário municipal de Educação, Ricardo Valença, diz ter assumido o cargo há três meses e está visitando as escolas. Ele mesmo pegou carona nos caminhões de lixo com as professoras, em direção à creche Betinho. "Aquelas mulheres são heroínas", disse. Segundo ele, as chuvas em Maceió atrapalham ações sociais para a escola. Há previsão que o prédio seja transferido. "Eu não concordo com a transferência. Tem que dar condições: melhorar a estrada, dar uma gratificação de difícil acesso, mais funcionários, implantar o Peti [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil]. Se você entrar na escola, verá que as crianças são tratadas com dignidade. Esse trabalho envolve outras secretarias", avalia Valença.

Semana passada, uma criança de doze anos morreu esmagada por um trator de recolhimento de lixo, no Lixão de Maceió, perto da creche Betinho. Ela não estudava e estava fora do Peti e estava dormindo entre papelões depois de uma noite inteira de trabalho no recolhimento de lixo quando foi atropelada pela máquina. Centenas de outros meninos e meninas seguem a mesma rotina.

Há cinco anos, o Ministério Público Federal entra com ações contra o município para acabar com o Lixão, sem sucesso. A Procuradoria Regional do Trabalho entrou com uma ação civil pública contra o município, cobrando indenização pela morte da criança. Semana passada, o prefeito Cícero Almeida (PP) disse não ser o responsável pela morte da criança, esmagada por um trator e criticou a imprensa por não mostrar suas ações à frente da Prefeitura.
"O acidente ocorreu fora do expediente, a empresa do caminhão era terceirizada. Generalizaram e fomos atingidos de forma covarde por uma responsabilidade que não é nossa", afirmou.

Fonte: O Globo

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