O dia em que Caetano Veloso quis me matar

Quando meu pai chegou em casa com Caetano Veloso debaixo do braço eu vi que tinha algo de bom naquele LP. Mal sabia ler, mas decifrei o título manuscrito na capa branca. Comecei a gostar de Irene, Não Identificado e Carolina de tanto ouvir o bolachão na vitrola, quando meu pai chegava do trabalho, sentava-se na sala e ficava horas se deliciando com as músicas.

Com as músicas e algumas cervejas. Lembro de ter enlouquecido quando ouvi Atrás do Trio Elétrico pela primeira vez. E a loucura foi ficando ainda maior quando decidi conferir pessoalmente essa história de que atrás do trio-elétrico só não vai quem já morreu.

Na primeira oportunidade, fui passar o carnaval em Salvador – salvo engano, lá por meados dos anos 90. Com alguns amigos, desembarquei na Terra de Todos os Santos sentindo cheiro de pecado e assobiando a música do Caetano, morto de vontade de correr pra festa. Mal deixamos as malas no hotel, disparamos pro corredor da folia, onde uma morena linda arrastava uma multidão com sua voz potente.

Antes, percorremos a pé quilômetros de distância, descendo e subindo ladeira, achando tudo lindo, maravilhoso. Já cheguei ao Corredor da Vitória me sentindo um derrotado. E me senti impotente quando, do alto do trio, a elétrica vocalista convidou: "Vamos dar a volta no trio?". E eu, encantado com as pernas da moça, esqueci das minhas – insignificantes em relação às dela. Até tentei contornar o carro, mas meu coração só pedia pra dar meia-volta… pra casa.

E a minha língua escapando boca afora, doida pra pedir arrego. Mas nem isso podia, porque não conseguia pronunciar um "a". E a desgraçada da frase do filho da dona Canô martelando na minha cabeça. "Que é que foi, meu rei? Vai dar uma de morto?", quis saber uma baiana descansada que desfilava ao meu lado. "Quem sabe assim eu consigo chegar ao Campo Grande", respondi, torcendo pra não errar de campo e ir parar no "Santo". Aliás, vim a descobrir o porquê de os foliões vestirem mortalha. Para mim, a indumentária sempre foi roupa de morto. E Salvador é o único caso do mundo em que o ser humano se veste de morto pra dizer que está vivo. "O Caetano está errado", pensei em voz alta. "Errado por quê?", quis saber a baiana ao lado. "Eu estou morto", respondi, torcendo para que o morto fosse apenas no sentido figurado. "E insisto em seguir o trio", completei, com muito esforço.

Foi a última frase, antes de apagar de vez e acordar sob refletores e pessoas vestidas de branco. Não mais branco que o sorriso da baiana, que resolveu me acompanhar até o hospital, talvez para ironizar da minha falta de jeito com o carnaval. "Onde estou?", balbuciei. "Em Salvador, meu nego", respondeu a outra (e eu rezando para que eu fosse mesmo o nego dela). "E quem é você?". Ainda com um sorriso no rosto, ela respondeu toda faceira: "Irene". O coração disparou, as pernas tremeram e suei frio. "Tinha quer ter nome de música do Caetano?", perguntei para mim mesmo. E voltei a fechar os olhos.

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