Em 2004, enfrentaram-se na terceira rodada do tradicional torneio de tênis Roland Garros o ex-numero 1 do mundo, o nosso Gustavo Kuerten, o Guga, e o número 1 da época, o incomparável Roger Federer; sendo que o Guga não era mais o Guga e o Federer já era o Federer —se é que vocês me...
Em 2004, enfrentaram-se na terceira rodada do tradicional torneio de tênis Roland Garros o ex-numero 1 do mundo, o nosso Gustavo Kuerten, o Guga, e o número 1 da época, o incomparável Roger Federer; sendo que o Guga não era mais o Guga e o Federer já era o Federer —se é que vocês me entendem.
Bem, o fato é que o suíço era Franco favorito —além de ser mais jovem, estava no auge, ganhando tudo que participava, enquanto Guga já patinava em direção ao encerramento da carreira —tanto que era o cabeça de chave 28 em Paris.
Acontece que, para a surpresa de todos, Guga enfiou um 3×0 goela abaixo no suíço, numa apresentação de gala que surpreendeu a todos —até ele mesmo, como declarou o próprio tempos depois, e é exatamente sobre a sua entrevista falando sobre este jogo que eu desejo falar.
Guga narrou aquele confronto como uma experiência única e especial em seus muitos anos como competidor de alto nível. Ele começou a entrevista confessando que entrou em quadra naquele dia apenas para fazer o seu melhor, já que não era nem de longe o favorito, mesmo com três títulos desse mesmo torneio no currículo. O tenista de alto nível tem consciência do seu momento e de sua capacidade, bem como do seu adversário também , tanto que entrou em quadra relaxado e disposto a fazer um bom jogo contra a fera Roger Federer.
Todavia, seu relato revelou-se quase uma experiência mística vivida, onde ele experimentou , naquele momento, uma conexão com algo inexplicável e maior. Tudo, absolutamente tudo que ele fazia, pensava e tentava, dava certo. Naquele momento, ele sentia-se como parte de algo que não sabia explicar, mas que o tornava simplesmente imbatível e à medida que a partida ia avançando, a gloriosa sensação só aumentava.
Visivelmente emocionado, falou que várias vezes ao longo do jogo, ele olhava tudo ao seu redor —a quadra, o adversário lá no fundo, os milhares de espectadores, as luzes, as nuvens, o céu, o infinito e sentia que tudo estava conectado a ele, e vive e versa, numa confluência de mente, corpo, espírito e tudo em seu entorno , que o fez sentir que havia algo muito maior à nossa espera, à nossa volta, a nosso favor….
Que viagem louca e deliciosa, não?
Assisti embasbacado e emocionado tal relato, que extrapolou uma descrição meramente esportiva e alcançou outros patamares, bem mais auspiciosos e interessantes. Então percebi que momentos assim, embora raros, talvez sejam mais comuns do que se imagina e não privilégio de poucos afortunados —basta prestar atenção.
Eu mesmo que tenho a tendência de colocar a racionalidade num posto talvez maior do que deveria, após a tal entrevista tenho percebido, volta e meia, breves e sutis momentos semelhantes ao experimentado por Guga, o qual alguns chamam de “fluxo de consciência ” —descobri que desde sempre há relatos semelhantes em todas as culturas e povos nas mais diversas circunstâncias e intensidades, sempre descritos como algo transcendente e delicioso, servindo de inspiração para diversas religiões, adquirindo conceitos místicos e filosóficos —como sempre acontece quando o ser humanos tenta interpretar e explicar suas experiências e sensações.
Confesso que, embora ache interessantíssimo, falta-me conhecimento e, vá lá, talento e disposição para aprofundar-me no assunto. Porém, acredito que estes momentos elevados, quase divinos, sejam a chave para várias respostas sobre além do que nossos olhos são capazes de enxergar. Talvez seja o lampejo ou uma pequena amostra da sensação de pertencimento, plenitude e poder que nos aguarda um dia —vai saber…
De qualquer modo, confesso que eventualmente sou capaz de enxergar o céu com nuvens que o Guga enxergou e experimentar a sensação de conexão com algo maior e mais elevado —uma espécie de leve epifania— nos momentos mais simples e inesperados, onde tudo se esclarece, tudo é possível e tudo somos capazes —até quem sabe vencermos o Federer, o Mike Tyson ou até mesmo nossos medos mais íntimos.