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Luis Vilar

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O ‘descanso’ do quixote

“Meus arreios são as armas/O meu descanso é o pelejar”. Quem se aventurar a ler o maravilhoso Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, na tradução de Almir de Andrade e Milton Amado, se deparará com tais versos pronunciados por Quixote, ao adentrar em uma venda que julga – em sua loucura de querer consertar o mundo – ser um castelo onde será ordenado cavaleiro errante.

Dom Quixote de la Mancha é uma das mais brilhantes, em minha opinião, obras da humanidade e traduz um sentimento inerente nos seres humanos que caminham sem abrir mão da fé e do direito de sonhar, ainda que muitas vezes transformemos meros moinhos de ventos em gigantes e dragões. Se há algo de belo que aprendi na minha profissão de jornalista foi a colecionar lições de vida, ao abordar cada personagem, nas maravilhosas histórias do cotidiano, que por vezes passam despercebidas.

O descanso do jornalista, muitas vezes é o pelejar. Uma vez jornalista, impossível caminhar por entre o concreto da cidade e as pessoas e não enxergar nelas poesias, biografias, formas de inventar e reinventar o maravilhoso milagre da existência, dando a este um sentido único, que vai desde a religião, uma filosofia, o amor a uma mulher, a um pai, uma mãe, um filho, enfim…Nossos arreios, quando de fato nos desarmamos das verdades preconcebidas, são nossas armas. Vagamos por reflexões que não escrevemos, por compromisso com a honestidade intelectual e com a objetividade, como tem que ser de fato.

Porém, existe em muitos jornalistas uma poética. Consumimos vidas alheias; penetramos nos mais diversos dramas a fim de entendê-los e escrevê-los, com o compromisso árduo de levá-los ao leitor de forma precisa. Ou seja, como eles realmente são. Este é nosso compromisso firmado. Eu pelo menos o tenho com vocês.

Descansamos – como tantos outros, nas mais diversas profissões – sobre a peleja do mundo. Sem direito a parar para consertar o coração destroçado por realidades assustadoras; incompreensíveis. Lembro-me de um quixotesco repórter com quem cruzei no início de minha profissão, quando estagiei na editoria de polícia. Ele me dizia: “os cadáveres falam suas histórias, sussurrando que seus fins poderiam ser outros, se acaso fossem dadas a eles a pena que escrevem suas vidas, sobretudo quando estão na mais primitiva das etapas de nossa cadeia alimentar”.

Recebia as palavras assustado, mas começava a prestar atenção na aliança colocada na mão esquerda de um jovem assassinado com seis tiros, por exemplo. Ali, residia um elo rompido, uma promessa não cumprida, uma felicidade interrompida. Mas, não falemos apenas nos mortos, mas sim nas entrelinhas de cada fato que nos é posto por um único ângulo.

Lembro-me de um texto feito num dia depois do natal, em um jornal impresso que trabalhei. Sai para um dia comum de trabalho. Caso não me falhe a memória estava pautado para ir ao IML ver quantas pessoas haviam morrido no dia 25 de dezembro daquele ano. Porém, algo me chamou a atenção na Praça da Faculdade. Um colchão rasgado, um casal deitado nele, com um bebê aparentado pouco tempo de nascido. Preso a um galho de uma árvore e cobrindo o colchão um mosqueteiro rasgado.

Caminhei até lá e falei com mãe do menino. Ela me contou que o garoto havia nascido nas primeiras horas daquele dia 25, embaixo de um caminhão que estava estacionado na praça. O nome do garoto – bem, havia uma dúvida entre Jesus e outro qualquer, que não me lembro agora. Prevaleceu Jesus. A história me rendeu uma bela manchete de jornal. Ainda mais porque o garoto tinha tido os seus “reis magos”. Alguém da vizinhança deu o colchão, um outro o mosqueteiro e por fim uma terceira pessoa ajudou a limpar os resquícios do parto.

Um fato de uma beleza poética impar. Na época, minha esposa estava grávida de minha pequena Beatriz. Não havia como não nos sensibilizarmos. Jesus – o pequenino daquela praça – ainda permeia minha lembrança. Volta e meia lembro dele. Um menino rosadinho, com olhinhos fechados, provavelmente destinado a uma árdua peleja. A matéria do jornal, por fim, fez com que eles ganhassem um retorno para a cidade onde moravam e onde poderiam ter um lar, segundo o pai de Jesus. Foi inevitável não sentir-me quixotesco, como se empenhasse uma lança e um elmo, na tentativa de melhorar o mundo.

Às vezes, amigo leitor, preocupa-me – permita-me a confissão – a forma como algumas cenas do mundo vão ficando comuns, como ao passar do tempo vamos nos indignando menos e quando menos se espera, nossa peleja ganha uma dimensão tão mínima, que passa batido os verdadeiros motivos pelos quais estamos aqui. Caros amigos, que por vezes montemos em nossos cavalos Rocinantes, desejemos nossas Dulcinéias, e tomemos as rédeas de um tempo que merece vir…

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