Fla X Flu

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Vestida, Norma era uma mulher acima de qualquer suspeita. Casada com Afonso há quase dez anos, era bonita, miúda, de pele clara e cabelos castanhos quase curtos, na altura do queixo. Trabalhava como professora primária e possuía a discrição típica da profissão. Afeita a gestos comedidos no modo de falar e de vestir, estava sempre impecável em suas camisas de linho branco de botões, usadas geralmente com uma saia lisa, que podia ser preta ou azul marinho. Vestida, Norma era uma mulher acima de qualquer suspeita.

Também quase não havia vestígio de maquiagem em seu rosto, mas ela tinha um hábito impulsivo, quase mórbido, que destoava dessa sua imagem. Norma tinha o hábito de humilhar o marido. Deleitava-se com o sofrimento dele de forma quase inimaginável para uma mulher que não se pinta. Traía Afonso com a desenvoltura dos infiéis natos, sem perder o ar sóbrio, mas em contrapartida não fazia o menor esforço para esconder dele as suas aventuras. Muito pelo contrário, só sossegava quando tinha certeza que o marido ficara sabendo de tudo.

Para isso, esquecia sobre a mesinha de cabeceira o cartão de um motel, ligava pra uma amiga e, quando sentia que Afonso estava próximo, começava a detalhar seus encontros extraconjugais com minúcias que fariam corar uma prostituta aposentada. O marido então se abatia, mas não a ponto de abandonar a esposa. Amassava o cartãozinho suspeito e fingia não ter ouvido nada.

Não a deixava, ainda que na cama deles ela não fosse aquela mulher descrita no telefonema, não fosse aquela da rua… isso mesmo! Certa vez, vieram contar-lhe… em plena luz do dia, encostada em um muro num local relativamente movimentado… De outra vez, a humilhação foi muito pior. Chegara no bar, onde estavam reunidos três dos seus melhores amigos, a tempo de ouvi-los e vê-los brindar com cerveja a generosidade de Norma. Brindaram também as coxas de sua mulher, as mãos, a boca habilidosa…

Mas até mesmo isso Afonso podia suportar. Não imaginava a própria vida sem Norma. Gostava de tê-la pela casa, do perfume que ficava no banheiro quando ela saía do banho, gostava até mesmo do seu modo de nunca sorrir e da fria mudez que ela fazia questão de manter nas noites conjugais. O pior era que no dia seguinte ela saía logo cedo e voltava recendendo a almíscar, cabelos desfeitos e um afogueado no rosto, fazendo questão de revelar-se, agora sim, satisfeita.

Há muito os pais de Afonso deixaram de freqüentar a casa deles. Dona Hermínia não se conformava com aquilo tudo, e seu Osório, homem nascido no Sertão pernambucano, lamentava a má sorte de ter tido um filho frouxo. Para evitar uma desgraça, cortaram relações com o casal e viviam como se eles não existissem.

Não bastasse isso, Afonso e Norma também não tinham amigos. As mulheres temiam por seus maridos na presença de tão dissimulada criatura, pois os homens fascinavam-se por ela e iam ao fundo do mar ou da lama para descobrirem o que havia por trás do linho branco de sua blusa.

Apesar da solidão em que a mulher o atirara dentro e fora de casa, ele considerava-se um homem feliz. Era dele a esposa, e ela nunca passara uma única noite fora de casa, gabava-se. Nunca ameaçara ir embora, mantinha sempre pronta a sua comida e as roupas impecavelmente passadas. Decididamente, ele se julgava uma pessoa de sorte.

E poderiam viver muito bem, por muitos anos ainda, se não fosse aquele dia, o dia do jogo. Afonso, que na maior parte do tempo era um homem extremamente comedido, chegando até a passar despercebido nos lugares, era louco por futebol. Não tão louco quanto era pelo Flamengo, seu time do coração. Somente ele o tirava da letargia. Em dias de clássico vestia-se de rubro-negro, enrolava-se na bandeira da mesma cor e, com um terço também bicolor nas mãos, ajoelhava-se em frente à TV. Gritava, sentia mudar de tonalidade a sua pele, ria, chorava, contorcia-se na poltrona e, quando praguejava baixinho, esmurrava o encosto dela.

Nesse dia em especial, era clássico pra torcedor nenhum botar defeito: um Fla X Flu valendo o título estadual. Após algum tempo de um angustiante 0 x 0, deu-se a tragédia: nos minutos finais dos acréscimos, o gol do Fluminense fez o juiz encerrar a partida.

Silêncio na sala…

Ainda silêncio… pesado, carregado de nitroglicerina. O rosto de Afonso era uma máscara de incredulidade e cólera. Levanta-se, deixando a bandeira jogada na poltrona, mas sente que não tem pra onde ir. Desliga a TV pra não ouvir as comemorações do adversário e, quando achava que nada de pior pudesse acontecer, viu Norma sair do quarto… estava com a camisa do Fluminense. Sorria um riso cínico enquanto ia até a janela da casa soltar os fogos comprados especialmente para a ocasião.

Afonso olhava pra camisa no corpo da mulher, ouvia o barulho dos fogos e pensava que nunca, em toda a sua vida, fôra tão humilhado. Foi até o quarto e, quando voltou pra sala, ainda encontrou Norma debruçada na janela. Chamou-a. Ela virou-se sorridente e recebeu os disparos. Dois tiros no peito tingiram de vermelho a camisa tricolor.

Ele não admitia traição.

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