TOQUES E TROCAS: NO REINO DAS TRADIÇÕES POPULARES

Toques e Trocas. Emocionar e permutar experiências. Uma coisa puxa a outra e as duas funções se completam e se expandem, revelando-se num trabalho que associa, em um mesmo episódio, inspiração e transpiração. Tudo na medida exata. As tradições populares debatidas e eternizadas em registro fonográfico único, apaixonado, autenticado pela presença viva dos mestres da cultura de raiz que vêm, desde sempre, escrevendo a história dos cidadãos de todos os tempos.

Essa é, em síntese, a proposta do Toques & Trocas que, de hoje a sábado reúne, na etapa Maceió – Sesc/Centro, Sesc/Poço e Fundação Municipal de Ação Cultural – talentos de um segmento pouco difundido da música de Alagoas, Pernambuco e Bahia, com o lançamento dos CD´s de Nelson da Rabeca e Chau do Pife (Alagoas), Maracatu Estrela de Ouro e Vanildo de Pombos (Pernambuco) e Bule-Bule e Samba Tradicional da Ilha (Bahia) e o seminário Política Pública, Produção e Intercâmbio das Tradições Populares que traz estudiosos, gestores, artistas, mestres e produtores culturais à mesa de debates (ver programação).

O projeto, vencedor do Prêmio Petrobrás Cultural 2004, uma realização da empresa pernambucana Pentagrama Produções e Promoções, é fruto de um esforço coletivo que inclui o patrocínio da Petrobrás e do Ministério da Cultura, a parceria do Instituto Pensarte, Sesc/AL e o apoio local da Secretaria Executiva de Cultura – SECULT, Associação dos Folguedos Populares de Alagoas, Coretfal, Fundação Municipal de Ação Cultural – FMAC e Fundação Municipal de Ação Cultural de Marechal Deodoro.

“Essas instituições tiveram a clarividência de, sem mais delongas, perceber a dimensão sócio-cultural do invento. Diante das dificuldades que, em geral, produtores e artistas enfrentam, sobretudo no universo das manifestações populares – isso serve de referência e contribui para que outros segmentos da sociedade possam vivenciar o complexo e delicado processo de identificação com suas raízes culturais” afirma Afonso Oliveira, produtor cultural e coordenador do projeto.

A idéia é “buscar novos caminhos e diálogos para a música nordestina” apresentando manifestações musicais de grupos e mestres que, dificilmente, teriam acesso ao mercado, cada vez mais envolvido e comprometido com o consumo de propostas que não incluem produtos dessa natureza. A partir dessa ótica, o público também é privado da informação e permanece desconhecendo trabalhos preciosos, não apenas do ponto de vista estético, mas, como elementos imprescindíveis à compreensão da rica e diversificada identidade cultural da região, marcada, de forma singular, por tradições e desdobramentos das culturas indígena, africana e européia.

Segundo Roberto Torres, especialista em pesquisa musical e produtor executivo do projeto em Alagoas, “existem manifestações tradicionais brasileiras que não dispõem de ferramentas para construir sua imagem e divulgar sua arte no circuito regional, nacional e internacional no âmbito da escola, da universidade e do mercado musical e cultural. O Toques & Trocas serve a esse fim”.

Como começou

Tudo começou há dois anos, quando a etnomusicóloga e arte-educadora alemã Katharina Döring (Bahia), Roberto Torres (Alagoas) e Afonso Oliveira (Pernambuco) – reunidos por interesses comuns na área da cultura popular de raiz – pensaram uma forma de inserir mestres e artistas desse universo no mercado cultural e em contextos/projetos educacionais. Partindo para as vias de fato, embrenharam-se numa intensa e pródiga pesquisa sobre os possíveis tesouros escondidos e, em certos casos, intocados, no reino das tradições populares.

A intenção era – e deu certo! – realizar um registro fonográfico de seis personagens desse universo – dois de cada estado, a priori – e debates sobre os rumos da produção cultural, o que necessariamente, envolve os Pontos de Cultura criados pelo MinC, a partir do programa Cultura Viva. Como se pode ver, todos os elementos interagiram, conspiraram a favor, e, assim, a diligência coletiva resultou em verdadeiras pérolas que, nessa primeira edição, são apresentadas com esmero de concepção e produção raramente encontradas no âmbito das iniciativas relacionadas às manifestações populares.

Os CD´s dos artistas de Alagoas foram gravados no Centro de Difusão Musical do Sesc/AL. No entanto, o objetivo do projeto já vinha sendo dimensionado e materializado a partir da pesquisa-ação e da pré-produção, norteadas pela filosofia da troca de valores e saberes entre os personagens das manifestações musicais selecionados e a equipe de trabalho que envolve profissionais das áreas de música, história, educação, produção cultural e jornalismo. Por tabela, essa troca deverá atingir diferentes públicos, transcendendo o raio dos formadores de opinião e chegando às escolas, às rodas informais, aos bairros, às casas dos cidadãos comuns.

Na verdade, o esforço vai além do espetáculo e pretende difundir, mais que a música, o respeito às especificidades regionais e ações fundamentais que representam valores e processos da vida individual e coletiva: memória, manutenção e transmissão. São ações que demandam conhecimento, iniciativa e muita, muita luta e implicam o entrosamento de vários saberes.

Nelson da Rabeca e Chau do Pife

A etapa Alagoas do Toques & Tocas apresenta dois artistas cujo talento transcendeu todas as adversidades de seus respectivos caminhos: Nelson da Rabeca e Chau do Pife. Duas histórias, dois exemplos de superação e persistência.

Chau começou a tocar aos 12 anos, em um instrumento rudimentar, confeccionado pelo pai, o Mestre Zabumbeiro, a quem acompanhava nas tocadas. Talvez no intuito de submetê-lo, quem sabe, ao primeiro “teste vocacional”, o mestre o incumbiu de cuidar para que a roça de milho não fosse molestada pelos pássaros. A qualquer sinal dos bichinhos, Chau, sentado numa pedra no meio do roçado, deveria espantá-los com o apito agudo de seu flautim.

Os pássaros ele espantou, claro. Mas estava, sem saber, ensaiando a virtuose que se revelou quando, em pouco tempo, aprendeu a tocar, com uma pequena flauta de quatro furos, todas as músicas que o pai executava na de oito. O menino cresceu e nunca mais parou de tocar, em situações e lugares dos mais inusitados que iam de casamentos e batizados a enterros e puteiros.

Ninguém Anda Sozinho é o segundo CD solo de Chau do Pife, realizado para o Toques & Trocas. Nesse trabalho o artista amplia seus horizontes na plasticidade e energia de sua performance e referenda um talento ímpar que o aponta como o melhor pifeiro do Nordeste.

O que seria violino soou diferente: se fez rabeca

“Nelson da Rabeca é um artista popular diferenciado: um artista inventor que constrói o instrumento onde toca e compõe, fechando um ciclo raro”, diz Roberto. Aos quase 60 anos, de agricultor talhado no eito de cana, virou construtor de rabecas a partir da visão de um violino, pela TV. Sua vida, então, gira no eixo e se transforma diante da promessa que fizera a si mesmo ao se deparar com aquele instrumento: “ainda faço um igual e vou aprender a tocar”.

Dito e feito, ou quase. O que seria violino – depois de várias e frustradas tentativas com os pedaços de madeira que encontrava na mata – soou diferente: se fez rabeca. Nelson reinventou, também, algumas das ferramentas de trabalho, a partir das que usara no corte da cana, como a espécie de estrovenga em miniatura que usa para escavar a madeira. O segundo passo foi arrancar um som bonito daquele pedaço de árvore, considerada, por pesquisadores e estudiosos “a única rabeca de coxo conhecida”.

Hoje, aos 78 anos, Nelson já fabricou perto de 4.000 rabecas. Tornou-se um referencial para bem além das fronteiras de sua terra natal, Marechal Deodoro, mas, só há alguns anos, Alagoas o descobriu, quando tocou ao lado do lendário Hermeto Pascoal, no III Maceió Jazz Festival. Na seqüência, o movimento Amigos do Nelson consolidou o nome desse artista, atraindo a atenção do projeto Sonora Brasil (Sesc), que o apresentou a todas as regiões do país e possibilitou a realização de seu maior sonho: adquirir uma casa “para receber os amigos”.

Nelson da Rabeca lança o terceiro CD, Segredo das Árvores, enquanto as rabecas que fabrica chega às mãos de renomados tocadores, entre eles, o mestre Salustiano, de Pernambuco; Siba, do grupo Mestre Ambrosio; e o pessoal dos Grupos Anima e A Barca, de São Paulo.

Enfim, trata-se de um encontro absolutamente insólito que inclui a mágica presença do maracatu Estrela de Ouro, de Aliança/PE, costurando o espetáculo dos dois alagoanos com a energia de todos os mestres de lança, e trazendo a bênção de todos os orixás.

SERVIÇO
Evento: Projeto Toques & Trocas
Atividades: Seminário (entrada gratuita) e Lançamento dos CD´s da coleção
Local: Sesc/Centro – Sesc/Poço – Auditório da Fundação Municipal de Ação Cultural
Ingressos: 1 quilo de alimento (Show de lançamento)

Fonte: Com assessoria

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