Inocente vive como foragido por dois anos

Por quase dois anos, o chef Douglas de Camargo, 36, foi obrigado a viver como um foragido da Justiça por um crime que não cometeu. Viveu enclausurado em casa, sempre com medo da polícia. Deixou o emprego e mudou de cidade por causa da ironia dos colegas. Foi abandonado pela mulher. No trabalho, ouvia gritos de "ladrão" quando passava.

Camargo recebeu da Justiça, no começo do mês, um salvo-conduto que impede sua prisão até que o caso seja esclarecido. É sua primeira vitória para provar que não roubou uma padaria na zona oeste de São Paulo.

O verdadeiro assaltante usou sua identidade. Foi preso e condenado, mas fugiu da cadeia, deixando para Camargo a sina de foragido. Quase dois anos depois de descobrir que era procurado por um crime que não cometeu, Camargo também não conseguia provar na Justiça que ele e o ladrão da padaria são pessoas diferentes.

O IIRGD (Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt) informou, no processo que tramita na 18ª Vara Criminal de São Paulo, que a planilha com as impressões digitais de Camargo tinha sido extraviada.

Não era possível, então, a comparação delas com as digitais do verdadeiro criminoso. Criou-se uma situação inédita: Camargo precisava se apresentar para que novamente suas digitais fossem coletadas. Mas, ao se apresentar, seria preso. Teria de ficar na cadeia até que as digitais fossem comparadas, o que poderia levar meses.

Sem a a comparação de digitais, Camargo conseguiu um salvo-conduto ao mostrar à Justiça uma certidão de casamento. Ele se casou quando o verdadeiro criminoso ainda estava na cadeia. Com o salvo-conduto, Camargo teve as impressões digitais coletadas para a comparação. Procurado pela Folha, o IIRGD informou que não houve extravio, e sim a "precipitação" de um funcionário que forneceu uma informação incorreta à Justiça. Segundo o IIRGD, a planilha foi encontrada e uma avaliação preliminar mostra que Camargo e o ladrão são pessoas diferentes.

Antes de ser considerado réu no assalto da padaria, Camargo foi vítima de outro roubo. Em julho de 96, o depósito de farinha da família em Osasco foi assaltado. Ele foi agredido com coronhadas. Os ladrões levaram seu carro, documentos e cheques. Ninguém foi preso.

Em dezembro do mesmo ano, dois homens assaltaram uma padaria na zona oeste de São Paulo. Foram presos logo depois. Um deles disse, no 91º DP (Ceasa), que se chamava Douglas de Camargo e informou a data de nascimento, mas não apresentou documentos. Por precaução, a polícia coletou as digitais do criminoso. Os dados fornecidos pelo ladrão conferiam com os registros de Camargo, que foi indiciado.

O criminoso foi condenado a um ano e nove meses de prisão. Mas o assaltante fugiu do 49º DP (São Mateus), com outros 80 detentos, em maio de 98.

Camargo, que tinha se mudado para Florianópolis, vivia uma carreira em ascensão. Formado em gastronomia, era cozinheiro-chefe do spa no Costão do Santinho Resort. Em dezembro de 2004, funcionários do resort fizeram uma busca nos antecedentes de vários trabalhadores e descobriram o problema de Camargo. Ele conta que foi levado para uma sala e obrigado a assinar a demissão.

Dias depois, quando perceberam que Camargo poderia ser inocente, ele foi recontratado, com aumento. O chef, porém, não agüentou as ironias e deixou o emprego em dois meses. Conta que os colegas gritavam "ladrão" quando passava.

Ele mudou de cidade (foi para Curitiba), mas o medo de ser preso continuou. "Sempre falava: "será que vou ser preso hoje?", lembra. Abandonado pela mulher, que levou o filho de quatro anos, Camargo voltou para São Paulo neste ano.

Outro lado

O diretor do IIRGD, Carlos Antônio Guimarães Sequeira, afirmou que a planilha com as impressões digitais do chef Douglas de Camargo não foi extraviada. Segundo ele, houve precipitação de um funcionário do instituto ao informar a Justiça do sumiço do documento.

Ao ser questionado pela reportagem sobre o extravio, relatado em dois ofícios do IIRGD à 18ª Vara Criminal de São Paulo, Sequeira disse que encontrou a planilha com as digitais de Camargo.

Ele afirmou que já houve uma comparação da fórmula fundamental (desenho básico) das impressões do chef e do ladrão. A análise mostrou, segundo o diretor do IIRGD, que se tratam de duas pessoas, o que inocenta Camargo. Sequeira disse que o instituto passa por um processo de digitalização no qual as planilhas são inseridas no sistema de computadores.

Segundo ele, o prontuário de Camargo devia estar sendo digitalizado quando o funcionário não o encontrou. "Mas não houve extravio."

Questionado sobre essa falha, Sequeira disse que faria uma apuração para descobrir as circunstâncias do erro. Ele reconheceu que já houve extravio de planilhas, mas disse que a digitalização é uma garantia contra o sumiço de prontuários.

Para o promotor Alfonso Presti, que atua no processo, a informação sobre o sumiço da planilha é grave. "É uma coisa gravíssima que gera insegurança." Ele afirmou que essa questão será discutida entre os secretários das Promotorias criminais, que vão pedir explicações ao IIRGD.

Por meio de sua assessoria, o Costão do Santinho declarou que Camargo era um "excelente funcionário" e que o resort o indicou para seu trabalho posterior, com um empresário em Curitiba. Camargo nega a indicação.

Fonte: Folha Online

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